Ex-presidente uruguaio Pepe Mujica está entre personalidades que mandaram mensagens de apoio à Ocupação Alcântara Machado, onde 33 famílias vivem desde 2015
O início de um novo ano sempre vem recheado de boas expectativas, desejos de felicidade e paz. Mas, para as os moradores da Ocupação Alcântara Machado, localizada nos baixos do viaduto de mesmo nome, na Mooca, zona leste, o começo de 2020 pode trazer o amargo gosto de uma reintegração de posse. A expectativa de quem vive no local é de que o despejo seja realizado ainda em janeiro, já que a autorização para remoção foi expedida em dezembro passado pela juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti, da 9ª Vara da Fazenda Pública.
A ocupação tem sua organização, com banheiros divididos por gênero, cozinha e lavanderia comunitárias, e seu iminente despejo tem chamado a atenção de diversas personalidades contrárias à ação da gestão Bruno Covas (PSDB). Vídeos de apoio gravados por jornalistas, artistas e autoridades têm sido divulgados pela página do Catso (Coletivo Autônomo de Trangressorxs Sociais) no Facebook.
Até mesmo o ex-presidente do Uruguai José Alberto Mujica, o Pepe Mujica, se pronunciou a favor da comunidade. Em um vídeo de dois minutos, Pepe Mujica, como também é conhecido, pede para que os moradores não desistam e, em espanhol, diz que “frequentemente há um sociedade rica que passa e finge que não os vê, não os entendem, que às vezes pior que a pobreza é o desprezo”.
Outras mensagens vieram de músicos como Edgar Scandurra, Helião do RZO e Rodrigo do Dead Fish. Os jornalistas José Trajano e Juca Kfouri integram a lista, e padre Julio Lancelloti, da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo e conhecido pela luta de décadas em favor da população vulnerável, também deu seu recado. “Saibam que vocês têm sempre meu apoio. Vamos pular na bala juntos, contra toda a repressão e violência, para achar saídas. Não percam a esperança, vocês não estão sozinhos”.
A ocupação, que teve início em 2015 após o ex-prefeito Fernando Haddad (PT) desativar um espaço de convívio para os moradores em situação de rua implementado três anos antes por seu antecessor no cargo, Gilberto Kasssab – à época no DEM, atualmente no PSD -, é habitado por cerca de 30 famílias que vivem em barracos e outras 50 pessoas que dormem na conhecida “praia”, ou seja, dentro de barracas de camping ou que repousam apenas em colchões.
Para a Prefeitura de São Paulo, a existência da comunidade apresenta “perigo de dano irreparável”, tanto para quem vive ali como para o viaduto, que recentemente teve partes interditadas para a passagem de veículos, após um incêndio atingir uma parte da comunidade em setembro do ano passado. Na época, duas pessoas ficaram feridas.
Não desistir, aliás, é sinônimo de vida para muitos dos que ali habitam, que buscam melhores condições para si e suas famílias, caso do carroceiro Adriano Almeida Ferreira, 31, que deixou o Ceará para tentar oportunidade melhor em São Paulo, onde mora há quatro anos. “É uma tiração o que estão fazendo com nós. Não levamos problema para ninguém. A comunidade é organizada. Não é certo tirar a moradia do cidadão. É desumano, está cheio de criança. Isso vai prejudicar muita gente”.
Adriano conta que, ao chegar na capital paulista, morou por pouco tempo na Rodoviária do Tietê, na zona norte, até conseguir um barraco de madeira na Ocupação Alcântara Machado, onde mora com a esposa, o enteado de 12 anos e uma amiga do menino, de 14 anos.
A ação da prefeitura, caso concluída, não irá afetar somente a vida de quem mora na ocupação, também vai afetar diretamente dezenas de pessoas que vivem nas ruas e usam o local para necessidade básicas, como lavar roupas e utilizar os banheiros, divididos para homens, mulheres e transexuais.
Na área comum não é permitido andar sem camiseta, fumar, beber ou usar qualquer tipo de droga. Durante a visita da Ponte, no final de dezembro, crianças brincavam e corriam de um lado para outro junto aos animais de estimação, alheias à aflição de seus pais em perderem seus tetos.
“Não vai afetar só os moradores daqui, mas também todos os moradores de rua e de outras ocupações da região que vêm tomar banho, assistir a TV. Aqui é como se fosse o trânsito dos moradores de rua. Muita gente vem buscar pessoas para fazer bico de montador de palco, trabalhar em evento, carga e descarga. Aqui funciona como uma central de emprego, pois tem gente disponível para qualquer tipo de trabalho”, afirmou o morador e um dos ajudantes da organização diária da ocupação, Rafael, 34 anos, que forneceu apenas o primeiro nome para a reportagem.
Outro ponto que também é criticado pela população local é a falta de opções para o simples ato de acompanhar filmes ou programas na televisão. “Gosto de assistir TV. A televisão é o que nos faz esquecer o mundo, a droga e a bebida. Tirando o espaço de TV não tem graça ficar aqui dentro. Vou ter que voltar para a rua de novo”, afirmou o pintor Willian Loss, 32 anos.
Além da remoção forçada, a principal reclamação dos moradores é a falta de diálogo da prefeitura com a comunidade. Tantos os entrevistados como a advogada da Pastoral Juliana Hashimoto, que acompanha o caso como terceira interessada, já que é a Defensoria Pública de São Paulo que trata dos interesses da comunidade, a gestão municipal faz muito pouco em apenas oferecer auxilio aluguel para quem reside em barracos e encaminhamento a CTA (Centro Temporário de Acolhimento), para quem dorme em colchão ou barracas de camping, caso de quem perdeu barracos durante o incêndio em 2019.
“A proposta que está sendo feita de não contemplar a integralidade dos ocupantes é um critério formalista, excludente e irracional, que não leva em consideração a realidade da ocupação. Na cidade de São Paulo é impossível achar um local para alugar com R$ 400”, afirmou Juliana. Ainda segundo ela, moradores da localidade que já receberam, por algum outro motivo, bolsa-aluguel em outra ocasião não podem ser contemplados novamente.
“Auxílio aluguel e encaminhamento para CTA é insuficiente, a demanda dessas pessoas é por moradia, o desejo deles é ter autonomia. Aqui você tem uma composição familiar diferenciada, não só solteiros, conta o assistente social Alex Uchoa, 29. O profissional tem uma história junto a comunidade, já que em 2012 passou a atuar na Pastoral do Povo da Rua, e em 2015 realizou seu estágio acadêmico no local.
Juliana, Uchoa e os moradores entrevistados pela Ponte entendem que o melhor para a população local é a locação social, programa que oferta unidades habitacionais a valores acessíveis de aluguel para a população de baixa renda.
Se persistir apenas a oferta do bolsa-aluguel, Adriano Almeida Ferreira ainda não sabe como fará para alimentar sua família e pagar por uma moradia. “Aqui consigo o sustento. Só Deus sabe para onde vou. Com o auxílio-aluguel não tem como. Só se for para uma comunidade muito longe, onde não tem trabalho”.
Enquanto a ação de despejo não acontece, um festival que visa contar o dia a dia do local, organizado pelo Catso junto aos moradores, deve ocorrer no dia 11 de janeiro. Os interessados em participar podem colaborar com um quilo de alimento, exceto sal e fubá.
Além da comunidade, embaixo do Viaduto Alcântara Machado também há uma academia de ginástica, um ringue de boxe, estacionamento, quadras de grama sintética e de concreto. No entanto, a prefeitura não respondeu se o pedido de reintegração abrange tais áreas.
Procurada, a Defensoria Pública informou por nota enviada às 18h35 no dia 7 de janeiro de 2020 que atua no processo desde 2015 representando as famílias que moram no local e que, por ordem de reintegração em 2016, iniciou tratativas com a Prefeitura “com vistas a encontrar solução habitacional definitiva para os moradores – o que levou a Prefeitura, em novembro daquele ano, a solicitar a suspensão da reintegração de posse”, diz a Defensoria.
Segundo o órgão, a Prefeitura solicitou o cumprimento da reintegração em setembro de 2019. “Desde então, a Defensoria Pública tem se manifestado, judicial e extrajudicialmente, para que o Município preste o atendimento habitacional de forma definitiva todas as pessoas que vivem no local”, assegura.
A Ponte procurou o Tribunal de Justiça para saber se há uma previsão de data para a saída das famílias, mas ainda não obteve retorno.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), informa que esteve no local no dia 17 de dezembro para fazer a identificação dos moradores. Foram cadastradas 33 famílias, cujas situações serão analisadas para a inclusão no auxílio aluguel. Vale salientar que a SEHAB, por meio do Núcleo de Soluções de Conflitos, orientou as famílias sobre a necessidade de desocupação voluntária do local, conforme determinação judicial.
O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Mooca, da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), também está à disposição para ofertar serviços da rede socioassistencial e cadastro no CadÚnico para a inclusão nos benefícios sociais para as famílias. “Até o momento, ninguém aceitou o acolhimento que foi ofertado em visita realizada ao local em 17/12. O CRAS continua à disposição para atendimento a quem precisar na Rua Henrique Sertório, 175 – Tatuapé”, diz trecho da nota.
Atualização às 18h55 do dia 7 de janeiro de 2020 para incluir posicionamento da Defensoria Pública de SP.