Análise | As negras da Filadélfia e Nova York do século XIX e seus corpos rebeldes e ingovernáveis

Em livro recém-lançado no Brasil, Saidiya Hartman narra as experiências de resistência de mulheres negras anônimas e famosas dos Estados Unidos na virada do século XIX para o século XX

Um território de faltas e violência habitado por mulheres negras que sustentam seus lares e sofrem a violência dupla, do Estado e da sociedade. Mulheres que, em meio a isso, desafiam o contexto adverso e inventam novas formas de viver, sonhando com um mundo diferente do que o pensado pelo homem branco. Esta poderia ser a descrição de um rincão qualquer do Brasil. Mas é neste cenário, ao som do nascente blues, que Saidiya Hartman passa a contar as histórias de “meninas consideradas impróprias pela história e destinadas a serem figuras menores” e mulheres afastadas dos grandes centros intelectuais ou de poder cuja trajetória de resistência tornou-se parte desse DNA teimoso da mulher afrodiaspórica.

EmVidas Rebeldes, Belos Experimentos, publicado no Brasil pela Editora Fósforo, Hartman traz as vozes de mulheres negras que habitavam cinturões negros na Filadelfia e Nova York na virada do século XIX para o XX. Muitas estavam no contexto da migração negra do Sul para o Norte em busca de uma vida em liberdade após séculos sustentando a economia do país em seus lombos.

“Fotografia do Desfile de Protesto Silencioso (Fotografias de afro-proeminentes, Coleção James Weldon Johnson, Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Universidade de Yale)

Um dos elementos mais notáveis é que logo de cara, Saidiya não oferece uma narrativa crua, desapaixonada e academicista. Tal como a vida dessas mulheres o narrar é vibrante, colorido, musical, dramático, sem deixar o rigor das fontes acadêmicas de lado. A sensação é de que estamos em uma sala e a autora nos conta histórias de antepassadas com aquele tom de oralidade das culturas africanas.

Para construir este rico retrato, Saidiya recorreu a registros de cobradores de aluguel; pesquisas e monografias de sociólogos; transcrições de julgamentos; fotografias do gueto; relatórios das delegacias de costumes, assistentes sociais e oficiais da condicional; entrevistas com profissionais da psiquiatria e da psicologia e autos de prisão. “Criei uma contranarrativa livre dos julgamentos e das classificações que submeteram jovens negras a vigilância, punição e confinamento, e que oferece um relato sobre os belos experimentos – de fazer do viver uma arte – realizados por aquelas às vezes descritas como promíscuas, inconsequentes, selvagens e rebeldes”, afirma. 

Cenas da rua, 7th Avenue nas cercanias da 30th, Distrito Negro, 1903, pg 98

“Rebeldia: um desejo ávido por um mundo não governado pelo senhor, pelo homem, pela polícia”. É neste estado de subversão constante que as mulheres negras e pessoas queers habitavam dentro dos cinturões negros da Filadelfia e Nova York. Ser rebelde era um ato de sobrevivência que quebra padrões morais – ainda mais pesados para mulheres negras – e torna as jovens personagens do livro corpos ingovernáveis constantemente reprimidos pela polícia. “Em grande parte, a história e a potencialidade do universo delas permaneceram impensadas porque ninguém podia conceber jovens negras como socialmente visionárias e como figuras inovadoras no mundo em que esses atos tiveram lugar.”

Relacionamentos heteronormativos ou diferentes identificações de gênero, por exemplo, levam-nas a visitar o sistema carcerário da época – que não parece estar muito distante do nosso, devo dizer. E mesmo assim dobrando a realidade à sua forma, elas rejeitaram todos os moldes. Eram grandes demais para aquilo, ilustrando um caminho muito similar à das mulheres negras no Brasil que, desde muito cedo, resistiram em meio a condições adversas e tentativas de subjugação.

Foto de Gladys Bently, queer, lésbica, cantora de blues, pianista e artista durante a Renascença do Harlem – Museu Smithsonian

Passando por vidas famosas como a da cantora Billie Holiday, da ativista Ida B Wells e da travesti cantora Gladys Bently às anônimas, Saidiya Hartman nos mostra que a luta da mulher negra comum nem sempre foi em meios intelectuais. As ruas, os guetos, os cortiços, as delegacias eram o campo de batalha que tinham que enfrentar. Assim como suas antepassadas escravizadas, sua luta primária foi pela sobrevivência às múltiplas violências perpetradas contra seus corpos rebeldes e, para isso, diariamente, elas escolheram viver dentro do verso da escritora Maya Angelou: “ainda assim eu me levanto”, uma cantilena que ecoa até nossos tempos.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas