Pesquisa realizada por grupo de estudo da Fundação Getúlio Vargas, divulgada com exclusividade pela Ponte, mostra que em 62% das ações na Justiça de SP houve alegação de confronto com a polícia; em 86% dos casos que vão à 2ª instância, decisão é mantida. Levantamento levou em conta apenas ações da Defensoria Pública de SP
As polícias Civil e Militar de São Paulo mataram 213 pessoas no primeiro trimestre de 2019, número 8% maior do que o mesmo período do ano passado, quando foram registradas 197 mortes. Cada uma dessas vidas não volta. Mas está previsto no Direito brasileiro que o Estado pode ser responsabilizado pelas mortes, sobretudo porque vidas que ficaram são diretamente afetadas. Essa é a chamada responsabilidade civil do Estado, ou seja, indenização, para casos de letalidade ou violência policial.
De 35 casos, a Justiça do Estado de São Paulo julgou improcedente, logo na 1ª instância, 88% das ações de danos morais e materiais movidas contra o Estado. Quando as famílias das vítimas entram com recurso em 2ª instância, as decisões são ratificadas em 86% dos casos. É o que mostram os dados analisados no projeto “Quem Policia a Polícia”*, desenvolvido por alunos da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, e divulgado com exclusividade pela Ponte.
A pesquisa analisou 35 casos de vítimas das forças de segurança que chegaram na Justiça paulista representados pela Defensoria Pública de São Paulo entre 2009 e 2015. Desse total, foram analisados 20 casos com alguma decisão de um juiz e, desse montante, apenas uma vítima conseguiu decisão favorável ao processar o Estado por danos morais. O valor da indenização foi de R$ 50 mil pela violência ocorrida em outubro de 2010. Mesmo assim, a ação foi julgada “parcialmente procedente”, porque o juiz rejeitou a obrigação do pedido de desculpas por parte do policial que cometeu a violência. O detalhe é que nesse único caso de sucesso a vítima é sobrevivente e fez grande diferença na decisão, já que pode testemunhar, contar sua versão e apresentar pessoalmente as provas.
“E, mesmo assim, esse caso que foi bem sucedido tanto na primeira quanto na 2ª instância, porque é muito comum o Estado recorrer de decisão favorável a vítima na 1ª instância. Ainda assim, não teve o pedido todo aceito, que foi justamente a realização de um pedido de desculpas”, explica Ana Carolina de Mello Said de Moraes, uma das participantes da pesquisa.
A alegação de que houve confronto com a polícia na fase de inquérito aparece em 62% das ações analisadas e 60% dos casos tiveram arquivamento do inquérito policial. Em mais de 90% dos casos julgados, o juiz acata o argumento de legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal. Esse é, aliás, um dos pontos principais do pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. Como informado pela Ponte, o depoimento dos policiais é considerado praticamente como verdade absoluta pelo poder judiciário, mesmo sem existir uma base legal para isso.
As alegações normalmente apresentadas pela Defensoria nas ações de indenizações podem ser divididas em cinco: a responsabilidade civil objetiva do Estado – ou seja, independentemente de culpa -; os Direitos Humanos da inerente à vítima e a perspectiva internacional sobre o tema; omissão nas investigações e na valoração das provas durante o inquérito; o fato de que o argumento de legítima defesa não exclui o dever do Estado de indenizar; e, por fim, que a prescrição passe a contar a partir do arquivamento da denúncia.
“Vale ressaltar que o Judiciário tem aceito esse argumento [prescrição] sabendo que a responsabilidade civil é independente da penal. A Defensoria tem trazido, repetidamente, essa explicação, ou seja, de que mesmo que o juiz acate a alegação de legítima defesa por parte do policial, no âmbito penal, isso não exclui a responsabilidade civil objetiva ou o dever do Estado de indenizar a família da vítima”, aponta o estudo.
O valor da reparação
O valor da indenização do único caso de sucesso em 1ª e 2ª instâncias analisado pela pesquisa, que é de R$ 50 mil, é um pouco acima da média de R$ 35 mil conseguida por familiares das vítimas do Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos durante uma contenção de uma rebelião na Casa de Custódia, em 1992, pela polícia com autorização da cúpula da Segurança Pública, conforme apontou reportagem da Ponte publicada em março deste ano.
“É difícil falar em parâmetros, mas a gente tem visto 100, 150 salários mínimos, que é um parâmetro do Judiciário para casos de acidentes em geral. E eu considero baixo. Só que existe uma questão: primeiro, que o R$ 50 mil é bem inferior aos 100 salários. Segundo, que esses 100 e 150 [salários] eu vejo quando há um acidente. Nesse caso, foi uma conduta reprovável do agente público. A ofensa moral me parece ainda mais significativa. O valor no geral da justiça brasileira é tímido. Eu acredito que a tese da indústria do dano moral, que alguns querem fazer crer que exista, não se confirma, já que elas tendem a ser baixas. Em casos de morte, elas também não são elevadas. A gente está lidando com casos de letalidade policial abaixo dos parâmetros mais usuais, e mesmo esses parâmetros não considero elevados”, aponta uma das coordenadoras do projeto, Maria Cecilia Asperti.
“É importante pensar na altíssima reprovabilidade desses casos de letalidade. É uma omissão do Estado muito grave, tanto na fiscalização desse agente público, nos protocolos de procedimento, quanto na investigação no âmbito criminal”, avalia.
A referência à ação policial oficial mais sangrenta da polícia paulista, o Massacre do Carandiru, aliás, aparece em alguns argumentos utilizados por juízes para negar o pedido de danos morais sob o argumento da vida pregressa da vítima, como aponta o estudo. “Os juízes classificam a vítima como criminoso e se alongam para justificar que, por conta do comportamento vergonhoso e criminoso da vítima, sua família não merece receber indenização ou um valor muito menor do que o pleiteado. São frequentes colocações como: ’em caso tais, foi reduzida a indenização de 500 para 100 salários mínimos tendo em vista o comportamento criminoso do falecido, já que lhes impunha considerável vexame’ e ‘a família do criminoso pretende que o Estado, o povo de São Paulo, venha a arcar com a reparação moral pela morte de um criminoso que, por ato próprio, fugiu da ação policial e tentou cometer homicídio, colocando em risco sua própria vida e dando a causa esse lamentável desfecho'”, aponta a pesquisa.
A corrida contra o tempo e por justiça é outro elemento fundamental para que essas perdas sejam reparadas às famílias, isso porque o levantamento mostra que o tempo médio entre a data do fato e a propositura da ação é de aproximadamente cinco anos, mesmo tempo para o chamado “prazo prescricional”, de acordo com o Decreto-lei do ano de 1932 (nº 20.910). Há um caso que chama a atenção: o tempo entre o fato e o pedido de indenização foi de sete anos e a Justiça considerou que o crime havia prescrito nas duas instâncias.
*Realizadores da pesquisa: Ana Carolina de Mello Said de Moraes; Beatriz Cristina Gonçalves da Silva Fazan; Lucas Gaspar Alves e Julia Libeskind com orientação de Maria Cecilia Asperti e Thiago de Souza Amparo
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