‘O referido elemento era de cor negra e estava com touca’, disse um dos guardas, na época, para explicar por que Leandro Machado ‘mostrava-se suspeito’
Faz muito tempo que o líder comunitário Leandro Machado, um jovem negro de 23 anos, foi morto a tiros por dois guardas civis metropolitanos, no Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo. Tanto tempo que a filha do Leandro, então um bebê com dois anos, se transformou numa moça sorridente de 17 — que chora toda vez que ouve o nome do pai, por lembrar que lhe roubaram o direito a guardar lembranças dele. Tanto tempo que a quadra esportiva onde Leandro costumava organizar eventos para a molecada do bairro ficou em pedaços. Tanto tempo que o Mal de Alzheimer levou embora boa parte da mente de José, pai de Leandro, antes que ele tivesse a satisfação de ver os homens que mataram seu filho no banco dos réus
Somente agora, em 13 de março, é que um tribunal de júri, reunido no Fórum Criminal da Barra Funda, vai julgar os três guardas envolvidos na morte de Leandro, ocorrida em 3 de novembro de 2003. Orlando Sérgio dos Santos, 62 anos, e José Donizeti de Freitas, 54, que atiraram em Leandro, respondem por homicídio doloso. Por confirmar a versão dos colegas em juízo, a guarda Andréa Alves dos Santos tornou-se ré no mesmo processo, acusada de falso testemunho.
Na noite em que Leandro foi morto, São Paulo vivia a semana da primeira série de ataques lançados fora das prisões pela facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). A família acredita que os guardas estivessem em pânico por conta dos ataques e por isso atiraram quando Leandro passou diante da base da Guarda Civil Municipal, na rua São Caetano do Sul. Nos bolsos, o jovem levava, segundo a família, um ofício em que pedia o apoio da GCM para um evento esportivo que pretendia realizar dali a duas semanas na quadra do bairro e a mamadeira da filha.
‘A imagem do inimigo’
Em seu depoimento à polícia, o guarda Orlando contou por que a aparência de Leandro lhe pareceu suspeita. “O referido elemento era de cor negra e estava com uma touca que chegava até a altura das sobrancelhas, mostrando-se suspeito, vez que ficava olhando o tempo todo para os lados”, disse. Na versão dos GCMs, Leandro teria pulado o muro da base, de dois metros de altura, e colocado a mão na cintura, como se fosse sacar uma arma. “Num gesto natural de defesa”, os guardas atiraram, acertando Leandro no lado esquerdo do peito e na parte de trás da cabeça. No 101º DP (Jardim das Imbuias), apresentaram a arma que teriam apreendido com o jovem: uma garrucha, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade.
A investigação da Polícia Civil corroborou a versão dos guardas. O laudo assinado pelo perito Lucivaldo Napoli concluiu que, sim, era possível que Leandro houvesse trocado tiros de frente com os GCMs e mesmo assim ser baleado por trás, graças à “flexibilidade e mobilidade do corpo humano”.
O Ministério Público, porém, não teve uma visão tão flexível. Em 2008, o promotor Virgílio Antônio Ferraz do Amaral denunciou os guardas Orlando e Donizeti por homicídio. “Confundindo-a [a vítima] como bandido, os indiciados atiraram contra a mesma, certeiramente, de trás para frente, na região parietal, não dando ao ofendido, desprevenido e inerme, qualquer chance de defesa”, afirmou. O promotor também acusou a dupla de inserir a garrucha na cena do crime, “com o fim de induzir em erro o juiz”. Já Andréa foi denunciada por falso testemunho porque “fez afirmação falsa e calou a verdade como testemunha com o fim de obter prova, destinada a produzir efeito em processo penal”.
Para o rapper Eduardo Righetti, o Mano Duda, que fez um rap sobre a morte do amigo, Tributo LDK , só o racismo explica terem atirado em Leandro. “O cara, por ser negro e humilde, é a imagem do inimigo para eles”, diz.
Os três réus continuam a trabalhar na corporação, afastados das ruas, atuando em funções administrativas. A assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo afirma que a Corregedoria da GCM espera a conclusão do processo criminal para decidir o que fazer com eles.
Na área civil, a família de Leandro conseguiu uma vitória no final de 2014, quando uma decisão em segunda instância do TJ-SP condenou a prefeitura de São Paulo a pagar R$ 200 mil para a família. Até hoje, porém, o caso segue enroscado na Justiça e a família ainda não viu um centavo.
Na manhã desta segunda-feira, a reportagem da Ponte perguntou a Oséias Machado, 49 anos, irmão de Leandro, o que espera do julgamento. Ele respondeu com uma única palavra, repetida três vezes:
“Justiça, justiça, justiça.”
Atualizado em 7/3, às 19h – Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, responsável pela defesa do guarda José Donizeti de Freitas, respondeu:
Em razão da proximidade do julgamento, a Defensoria Pública não irá antecipar sua posição. Os argumentos e os esclarecimentos referentes a esse caso serão apresentados no Plenário do Tribunal do Júri.
A reportagem não conseguiu contato com o advogado dos outros réus.