Três explosivos foram jogados em direção a cinco pessoas, mas ninguém se feriu; no mesmo local, guardas agrediram população de rua e um padre na semana anterior
Moradores de rua foram alvo de três bombas de pequeno porte na madrugada de segunda-feira (24/9), no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo. Ninguém se feriu. Uma semana antes, no dia 14/9, uma tropa da GCM (Guarda Civil Metropolitana) agrediu a população de rua no Centro Comunitário São Martinho de Lima, localizado a aproximadamente 500 metros do local onde as bombas explodiram.
Cinco pessoas dormiam na calçada da Rua Dr. Guilherme Ellis, próximo ao Parque da Mooca, quando um carro passou e seus ocupantes lançaram os pequenos explosivos em direção ao povo de rua. Não deu tempo de gravarem a placa ou identificarem o modelo do veículo de cor branca, nem a quantidade de passageiros.
O veículo fugiu em direção à Radial Leste, que liga os bairros da zona leste ao centro da capital. “Era entre 23h e 0h, não deu para ver direito. Só acordamos no susto, pensando que era tiro”, conta Uelbert da Silva, 26 anos. A segunda agressão traz medo para quem vive no local há tempos.
“Vou ter que arrumar um cachorro ou bolinha de gude para revidar. Parece que são uns boys, não vou deixar boy ameaçar a gente não”, diz Uelbert, seguido de outros companheiros de rua, que, apesar de não estarem ao seu lado no momento em que as bombas explodiram, são solidários e garantem proteção.
Uelbert mora naquela calçada desde dezembro de 2017, quando chegou a São Paulo vindo de Salvador, capital da Bahia, onde nasceu. “Tentei buscar uma condição melhor, mas não consegui nem os documentos. Na semana passada, perdi minha carroça para a GCM”, lamenta, citando o dia em que a Guarda invadiu o centro comunitário. Ele conta que levou choque de arma taser no pescoço.
O rapa, gíria usada para o serviço em que funcionários da prefeitura tomam pertences da população de rua, terminou com um deles preso e vários agredidos. Além disso, padre Júlio Lancellotti foi xingado, ameaçado e atingido por cuspe de um dos guardas.
“Esta é uma região que sempre teve atividades de acolhida para o povo de rua, é a segunda ou terceira região de São Paulo em maior densidade com cerca de 3 mil pessoas nesta situação”, conta padre Júlio. “A prefeitura tem diariamente retirado as coisas dessas pessoas e os pressionam a ir para os albergues, lugares em que eles não têm autonomia e são sucateados”.
Desde a ação truculenta da GCM, Uelbert trocou a carroça em que recolhia recicláveis para se sustentar por uma banquinha improvisada. Nela, ele amontoa maços de cigarro para vender aos outros moradores de rua, com preços entre R$ 4 e R$ 5.
“Dá para tirar R$ 10, R$ 12 por dia, o suficiente para comprar um pão. De dia a gente come no São Martinho, tem lanche e almoço, mas de noite é por nossa conta”, explica. “Às vezes, vem doação para gente, às vezes, não. O padre [Júlio] nos ajuda muito. Teve um dia que fez 9º C, ele veio trazer manta e chocolate quente para o povo”, lembra.
Histórias de desilusão
Sem emprego, Uelbert segue distante de alcançar o sonho de uma vida melhor em São Paulo. Para piorar, além de perder a fonte do mínimo sustento na ação da GCM de São Paulo, teve levado o único contato com a família: um celular em que estavam anotados os números dos parentes lá na Bahia.
“Não penso em sair daqui [da calçada da Rua Dr Guilherme Ellis], mesmo depois das bombas. Não tenho para onde ir, vou para onde? Levaram até meu celular, não tenho com quem contar”, diz. “A gente não aguenta dentro de um albergue, ainda mais no calor. Somos maltratados lá. Temos nosso livre arbítrio, só estamos atrás da moeda do dia a dia aqui na rua”, completa.
A desilusão está presente na vida de outras pessoas ali na mesma calçada, ao lado da banca do Bahia, como alguns moradores o chamaram no tempo em que conversou com a Ponte. Fábio Pereira da Silva, 39 anos, trabalhava como pintor e ajudava na obra de uma faculdade que está sendo construída no bairro. Ficou uma semana, tempo suficiente para o empregado vê-lo bebendo, motivo de sua dispensa.
“Estou na rua desde 2013, quando separei da minha mulher. Morava com ela em São José dos Campos em uma casa no mesmo bairro em que minha mãe morava”, lembra. Pai de Maria Eduarda, 6 anos, o pintor não vê a filha já faz três. Perdeu metade dos passos da pequena até aqui.
“Sou alcoólatra, sabe? Acordo e sinto o corpo tremer, preciso tomar uma cachaça senão o corpo convulsiona. Tomo aquela barrigudinha que não dura tanto. Ontem comprei duas garrafas de 51”, explica, sobre o vício. “Já teve gente que tentou me matar por causa da cachaça, amigo de rua. Fiquei com marca de paulada no braço. Imagina se fosse inimigo?!”, relembra.
Fábio é chamado de Cantor pelos amigos de rua, diz que ninguém o reconhece por Fabinho, apenas pelo apelido, dado por causa dos sambas que costuma entoar. Ele não dorme na rua em que as bombas foram lançadas, mas no CTA (Centro Temporário de Atendimento) da Mooca, a 1 quilômetro do Centro Comunitário São Martinho de Lima e 700 metros da Rua Dr. Guilherme Ellis.
“Tem um bom espaço no CTA, recebe umas 420 pessoas. Sou 16h lá, significa que entro de tarde, posso tomar banho e dormir, depois saio às 8h para a rua. Aqui, no centro, são 820 pessoas atendidas no lanche e almoço. Quando passa desse número, o povo recebe também, ninguém fica sem comer. Sempre teve muita gente em situação de rua por aqui, desde quando cheguei, em 2013”, relata Cantor à Ponte.