Carlos Henrique, 15, e Rian Jorge, 18, foram baleados pelas costas em 2020, na zona leste da cidade de São Paulo; guarda alegou reação a tentativa de assalto, mas Ministério Público apontou “excesso desnecessário” de tiros
Há dois anos, duas mães buscam entender o que aconteceu no dia 15 de março de 2020. “Meu filho pediu dinheiro para comprar pastel na feira com o Carlos e não voltou mais”, lamenta a comerciante Juberlita Maria dos Santos Farias, 44, mãe de Rian Jorge dos Santos Farias, 18. Carlos Henrique de Jesus, 15, e o amigo foram mortos por um guarda municipal no bairro do Jardim Roseli, na zona leste da cidade de São Paulo.
O crime aconteceu a quase um quilômetro de distância de onde os jovens moravam e próximo à residência do guarda civil municipal (GCM). “Naquele dia, eu fiz cuscuz para eles, umas 1h40 da manhã, porque eles iam num baile”, lembra Juberlita. “Depois, por volta de umas 6h, eles voltaram, meu filho pediu dinheiro para comprar o pastel na feira e falou ‘já volto’. Esse dinheiro até hoje tá guardado na carteira dele. Eles estavam muito felizes, brincando”. Os dois foram numa moto vermelha que a comerciante deu a Rian quando ele completou 18 anos, em fevereiro daquele ano. Carlos ainda estudava e Rian trabalhava junto com a mãe em uma adega.
De acordo com o boletim de ocorrência, o GCM Samuel Alves dos Anjos, 47, voltava para a casa em uma motocicleta por volta das 7h. Quando passou pelo cruzamento da Rua Luiza de Jesus Ferreira, disse que “dois indivíduos em uma Honda CG 160, cor vermelha,” exigiram o seu veículo. Ele informou que o rapaz que estava na garupa desceu armado com um revólver calibre 38 e tentou revistá-lo. Neste momento, Samuel relatou que estava com uma pistola Taurus calibre 380 e, por “temer por sua vida”, passou a atirar contra a dupla.
O guarda descreveu que aquele que pilotava a motocicleta “correu e caiu, ferido, 30 metros a frente” e o outro “que empunhava a arma de fogo, desceu a via pública, não sendo possível identificar para onde tinha ido”. Ele aponta ter ido atrás do que fugiu, diz que uma pessoa na rua lhe contou que viu o jovem em frente a uma escola e o guarda “o encontrou cerca trezentos metros a frente caído na calçada agonizando”, na esquina das ruas Jorge de Barros e Abner Ribeiro Borges. Depois, ele retornou para o local onde teria sido alvo da tentativa de assalto e relatou que soube “por populares” que o piloto da moto tinha sido socorrido por outra pessoa. Só a partir daí que o guarda acionou a Polícia Militar e ligou para a base da GCM de São Bernardo do Campo (cidade do ABC Paulista), onde trabalha. Ele afirmou que disparou 18 vezes, ou seja, esgotou quase todas as balas que a pistola tem capacidade, restando uma munição na arma, segundo o boletim de ocorrência.
“Só deu o tempo de eu cochilar e ouvir batendo no portão de que balearam o meu filho e eu saí com roupa de dormir”, conta Juberlita. “Eu fui lá e vi ele no chão. Gritei ‘Rian, a mãe tá aqui’, mas ele já estava morto e não deixaram eu chegar perto dele”, lamenta. Rian foi socorrido pelo Samu ao Hospital São Mateus, mas chegou ao local sem vida. “Eu acordei e deu vontade de rezar duas vezes o Pai Nosso, foi muito estranho, e depois bateram em casa, gritando que o Carlos tinha levado tiro”, completa a auxiliar de limpeza Rosilene de Jesus, 37, mãe de Carlos.
Carlos havia sido levado ao Hospital Cidade Tiradentes, que havia informado à polícia sobre uma pessoa que deu entrada no local com ferimento de arma de fogo. Os PMs Allan Carvalho Souza e Henrique de Paula Venâncio Catarino informaram que levaram Samuel ao hospital e ele reconheceu Carlos como um dos assaltantes. O adolescente morreu pouco tempo depois. No local, Rosilene denuncia que foi maltratada pelos policiais e ameaçada pelo guarda. “Ele falava para eu ficar longe se não ia me matar, os policiais chamaram meu filho de tudo quanto é nome, de delinquente, de vírus”, diz com a voz embargada. “Teve uma hora que meu filho começou a vomitar sangue e os PMs me empurraram para fora, não deixaram eu acudir, só depois veio uma médica, mas não teve mais jeito. Os policiais só saíram e disseram ‘mais um CPF cancelado'”, conta, chorando.
Além disso, começou a circular em um grupo de Facebook fotos do corpo de Rian ensanguentado, que a família acabou tendo acesso. Na postagem, há diversos comentários sobre o caso do tipo “Festa no inferno, 2 CPF cancelado”, “dois ratos a menos”, “tem que deixar a meta aberta, quando atingir a meta, dobra a meta”, “tem que morrer mais”. Um ainda fez uma ameaça nos comentários “se informar o endereço dos ladrões, me coloco à disposição para ir até la avisar as mães com a mesma crueldade que eles roubavam”.
As famílias ficaram muito abaladas. “Nossos filhos foram mortos e a gente que estava sendo vista como bandido”, lamenta Juberlita. “Em nenhum momento, os policiais, a delegada queriam ouvir a gente. No hospital, a delegada só perguntou se meu filho tinha passagem”, completa Rosilene.
Tiros pelas costas
De acordo com os laudos necroscópicos, os dois jovens levaram tiros apenas pelas costas. Carlos foi atingido com um tiro na nuca e outro na panturrilha da perna direita. Rian foi baleado quatro vezes: um tiro na nádega direita, um na lombar, um próximo à axila esquerda e o último no dedo da mão esquerda. Não havia indicativo de disparo por curta distância.
No boletim de ocorrência, consta que nenhuma arma atribuída aos jovens ou descrita pelo guarda foi encontrada no local e nas imediações. A pistola do GCM, que é de propriedade da Prefeitura de São Bernardo do Campo, também não foi apreendida no momento do registro da ocorrência. A delegada Tarsila Fernandes Zuin, do 49º DP (São Mateus), justificou que “em casos como o presente a apreensão gera mais ônus ao Poder Público que precisará fornecer uma segunda arma ao guarda do que bônus” e que “não se pode perder de vista o fato de que permitir que o guarda civil retire-se desta unidade e rume a sua residência desarmado é um risco desnecessário”.
A arma foi solicitada e apreendida para perícia em 14 de junho de 2021 a pedido do delegado Daniel Bruno F. Colombini, da mesma delegacia, e que conduziu o inquérito. Ou seja, mais de um ano depois da ocorrência. A investigação também aponta ter percorrido ao menos seis endereços para localizar câmeras de vigilância e testemunhas, mas as que teriam sido encontradas não funcionariam e os abordados pelos investigadores disseram não ter presenciado o que aconteceu.
Consta que a delegada Renata Lancellotti Zuccaro e o delegado Daniel Colombini pediram, em duas oportunidades, à Guarda Civil Municipal de São Bernardo do Campo uma cópia de apuração interna sobre o caso, mas o corregedor geral Rogério Oliveira Renó respondeu que não tinha sido aberto procedimento administrativo nem havia condenações anteriores nesse âmbito contra o guarda, que está na corporação desde 2002 e teria “comportamento excelente”.
O Ministério Público Estadual solicitou uma série de diligências para a Polícia Civil aprofundar as investigações. A promotora Soraia Bicudo Simões Munhoz pediu que os investigadores percorressem o local do crime e as imediações novamente atrás de câmeras e testemunhas, requereu informações sobre os jovens, depoimento de familiares, comunicação da ocorrência à PM, laudos complementares, novo depoimento de Samuel e reprodução simulada (reconstituição da dinâmica dos fatos a partir da versão do guarda).
“A gente está acostumado com um trabalho tão mal feito que quando tem uma coisa certa, só o básico, e sem a provocação dos familiares, é de se comemorar”, aponta Raquel Altoé, advogada da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que passou a acompanhar o caso e as mães dos adolescentes. “18 tiros, com duas pessoas correndo, não dá para justificar legítima defesa”.
No inquérito, aparece que a Polícia Civil foi uma vez aos endereços dos familiares de Rian e Carlos, mas não encontrou a numeração correta. Rosilene afirma que foi à delegacia perguntar sobre o caso, mas não foi atendida. “Nunca nos ouviram”, critica.
A reconstituição feita pela Polícia Civil indicou que “não há evidências materiais que contradigam a versão apresentada por Samuel”, apesar dos ferimentos das vítimas e do número “grande de disparos efetuados”. No segundo depoimento, o guarda contestou a perícia no corpo de Rian porque a guia de encaminhamento de cadáver feita pelo Hospital Geral de São Mateus descrevia que o rapaz tinha ferimento de arma de fogo com indicação de entrada pelo tórax e de saída pelo dorso. Também disse que, em 19 anos de corporação, “essa foi a primeira em que houve resultado morte numa ocorrência sua, sendo que até hoje faz tratamento psicológico, pois foi diagnosticado com estresse pós traumático”.
A promotora, no entanto, entendeu que mesmo Samuel estando, “em tese”, em uma situação de legítima defesa, “agiu com evidente excesso doloso, efetuando o total de 18 disparos de arma de fogo na direção das vítimas, que foram atingidas nas costas e em região posterior do corpo”. Ela o denunciou por homicídio simples, cuja pena varia de seis a vinte anos de prisão. “A sede das lesões suportadas pelas vítimas e o local onde foram atingidas, deixa claro que os disparos letais não eram necessários”, argumentou Soraia Bicudo.
A denúncia foi aceita pelo juiz Ricardo Augusto Ramos, da 1ª Vara do Júri do Foro Criminal da Barra Funda, em 14 de julho. Cabe recurso à decisão.
Para as mães, o fato de se ter um aprofundamento das investigações é um caminho para respostas. “Eu sempre corri atrás para criar ele e mãe nenhuma merece perder o filho assim, porque se ele fez alguma coisa de errado e o policial [GCM] tem poder de prender, que prenda, mas não tire a vida”, lamenta Rosilene. “Eu entreguei na mão de Deus porque a gente não tem ninguém para defender a gente, eu não acreditava mais na Justiça”, complementa Juberlita.
O que diz a GCM
A Ponte solicitou entrevista com o guarda Samuel dos Anjos via assessoria de imprensa da Prefeitura de São Bernardo e por número de celular direto, mas não houve resposta. No processo, também não constava ainda defensor constituído por ele. Caso se manifeste, esta reportagem será atualizada.
O que diz a polícia
A reportagem também procurou a Polícia Civil sobre as investigações e a PM pela denúncia de Rosilene. A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria da Segurança Pública, não respondeu as perguntas e encaminhou a seguinte nota:
O caso foi investigado pelo 49º Distrito Policial (São Mateus) por meio de Inquérito Policial (IP), sendo relatado à Justiça em junho de 2020. O IP retornou à unidade para cumprimento de cota em setembro de 2021, sendo devidamente cumprida e enviada ao Poder Judiciário em abril deste ano, não retornando mais desde então.
*Reportagem atualizada às 19h42, de 22/07/2022, para incluir resposta da SSP.