Após ignorar apologia ao crime de policiais, polícia prende jovem por funk

Advogado aponta excesso na prisão e MC Juninho DBC foi liberado no Guarujá (SP); especialistas alertam para desproporcionalidades na aplicação da lei

MC Juninho DBC em frame do vídeo de música criminalizada pela polícia | Foto: Reprodução

Na cidade do Guarujá, litoral paulista, um vídeo no TikTok levou Adelso dos Santos de Almeida Júnior a responder por associação ao tráfico, crime com pena prevista de até dez anos de prisão. Nesta quinta-feira (3/8), a Polícia Civil prendeu o jovem de 21 anos, também conhecido como MC Juninho DBC, por apologia ao crime e associação ao tráfico após o cantor publicar uma música em que o eu-lírico, ou personagem da letra, debocha do assassinato do soldado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) Patrick Bastos Reis: “Eu troco tiro com a Baep e é sem medo de morrer/ Aqui é o P2C eu sou do crime organizado/ Pode descer lá, Rota da capital de São Paulo/ Os menor cheio de ódio com a 9 na cintura/ Eu tava no horário, do nada vira a viatura/ Trocaria do caralho eu vou contar pra vocês/ Nós mandamos um montão, baleamos dois de uma vez/ Um ficou fodido e o que deitou foi o Reis”.

A prisão aconteceu na semana em que a cidade do litoral paulista sofre uma onda de mortes durante a Operação Escudo, e dias após policiais debocharem, em vídeos nas redes sociais, dos assassinatos cometidos pela polícia.

Advogado de Adelso, Silvano José de Almeida explica que, após ser chamado pela família do jovem para assumir o caso, ficou surpreso com a ordem de prisão, já que, ele explica, o crime de apologia ao crime não pode acarretar em prisão de “forma alguma” por ser de menor potencial ofensivo. O artigo 287 do Código Penal diz que a pena para casos em que o acusado realiza “apologia de fato criminoso ou de autor de crime”, leva apenas a detenção em flagrante do acusado, que pode responder em liberdade e, se condenado, tem pena máxima de 1 a 3 meses de prisão.

Ao chegar à Delegacia Especializada em Investigações Criminais (Deic) de Santos, no entanto, o advogado foi informado de que o funkeiro estava sendo acusado de associação ao tráfico, o que o fez questionar os métodos do delegado Alexandre Peres Malantrucco, responsável pela prisão.

“Para uma prisão em flagrante por associação ao tráfico, você precisa provar que a pessoa acusada está de fato ligada a alguma rede criminosa. O que questionei é que não se pode fazer contrato com si mesmo, já que não havia material algum que ligasse Adelso a outras pessoas”, explica.

Silvano conta que Adelso trabalha como ajudante de obras e armador, e que faz música como hobby. É pai de uma criança e muito próximo aos pais e aos irmãos. O advogado ainda afirma que o jovem estava bêbado e se arrependeu da publicação.

Flagrante irregular

Adelso passou a ser investigado, inicialmente, a partir de um inquérito instaurado pelo delegado Francisco Wenceslau, da Primeira Divisão de Investigações Gerais (1ª DIG), subordinada ao Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior (Deinter) de Santos, na última terça-feira (1/8).

O inquérito partiu de um ofício assinado pelo major Rodrigo Elias da Silva, chefe da 6ª Divisão de Investigações de Combate à Vitimização do Policial Militar, vinculada à Corregedoria da PM. Nele o major Rodrigo já trazia as informações sobre Adelso e também aventava sobre a possibilidade de enquadrá-lo no crime de associação ao tráfico.

O promotor Marcio Leandro Figueroa, do Ministério Público de São Paulo, ainda na terça-feira (1), se manifestou positivamente a um pedido de mandado de busca e apreensão assinado pelos delegados Francisco Wenceslau e Alexandre Malantrucco, em que acreditavam que iriam encontrar evidências da relação de Adelso com o Primeiro Comando da Capital (PCC). O mandado foi expedido na quarta-feira (2/8) pelo juiz Edmilson Rosa dos Santos da Comarca do Guarujá do Tribunal de Justiça de São Paulo, que listou o que os policiais deveriam procurar:

“Defere-se busca e apreensão de eventuais armamentos e munições ilícitas ou sem devida documentação de porte/registro; busca e apreensão de eventuais substancias ilícitas e/ou apetrechos e materiais porventura utilizados em traficância ilícita; defere-se busca e apreensão de celulares, smartphone, computadores, e equipamentos eletrônicos que porventura contenham informações edados de interesse à elucidação de eventuais atividades ilícitas ou desbaratamento de redes deassociações criminosas; busca e apreensão de objetos que tenham envolvimento com praticascriminais atualmente sob investigação”

Sem encontrar Adelso nos endereços informados no mandado, e também sem encontrar nenhum dos itens listados pelo juiz, os policiais civis Rogério Teófilo da Silva e Fábio Vieira Mendes, que cumpriam o mandado na quinta-feira (3), acharam e levaram o MC até o 2º DP do Guarujá, onde o delegado Alexandre Peres Mantrucco decidiu pela prisão em flagrante.

Durante a audiência de custódia realizada na sexta-feira (4/8), a juíza de plantão Natália Garcia Penteado Soares Monti mandou soltar Adelso. Para a magistrada, o suposto crime de apologia ao crime, teria sido cometido anteriormente, o que significa que não caberia a prisão em flagrante. “A pessoa custodiada não foi presa cometendo o crime, nem tinha acabado de cometê-lo, nem mesmo foi encontrada com bens que se faça presumir a sua participação no delito”, afirmou a juíza em sua decisão. O MC foi solto ainda na sexta (4), mas segue investigado.

“Os policiais agiram na emoção após perder um colega policial, é compreensível, mas houve excesso na prisão, resultado de uma semana difícil em que estamos vivendo no Guarujá. Foi uma publicação infeliz da música e que teria passado despercebida também se não estivéssemos no momento em que estamos vivendo”, defende o advogado Silvano José de Almeida.

Subjetividade da lei 

Sociólogo, graduando em Direito e pesquisador do Núcleo de Justiça Racial de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Luã Ferreira também acredita que a música de Adelso também teria sido ignorada se não tivesse viralizado na semana da Operação Escudo. 

“Encontramos essas músicas de proibidão com muita frequência, não é um caso isolado e estamos falando de um jovenzinho que publicou uma música no Tik Tok e que é completamente insignificante em comparação a toda violência que está acontecendo nessa semana de conflitos”, critica. 

Na letra, o personagem cantado por Adelso conta que é de uma facção e que troca tiros com o Baep (Batalhão de Ações Especiais da Polícia). Em outro momento do verso, ele também faz referência à arma encontrada pela polícia no local do crime, uma pistola 9 milímetros: “Os ‘menor’ cheio de ódio com a 9 na cintura. Eu tava no horário. Do nada vira a viatura. Trocaria do caralho”.

“É uma área nebulosa que não é tão simples como o judiciario diz que é — você nem sabe quem é esse jovem, você não tem como afirmar a partir de uma letra de um minuto. E você só está afirmando isso, inclusive, porque nesse momento é importante politicamente, segundo a visão do Estado, no caso especifico da morte do soldado. Gravasse em outro contexto, em que isso não estivesse evidente, a polícia nao estivesse procurando culpados, teria passado batido, assim como cotidianamente passa batido esse tipo de música. Não é uma preocupação com a letra, mas é uma participação a um contexto especifico”, critica. 

Em sua dissertação de mestrado, “Bezerra da Silva é o Pai do Proibidão”: Crimes de Apologia e a Criminalização do Funk Carioca”, Luã Ferreira analisou a trajetória da aplicação do crime de apologia ao crime em composições musicais desde os anos 40, quando o artigo 287 surgiu no Código Penal. 

O pesquisador explica que o crime surge no contexto politico em que o presidente Getúlio Vargas buscava um ideal de desenvolvimento social e econômico próximo a moldes europeus, com a intensificação da indústria e de incentivos ao trabalho. Nesse contexto, a figura do malandro, tão presente nos sambas da época, passou a ser vista como uma ameaça à ideologia que o governo buscava implementar. 

Com esse ponto de partida, Luã, que hoje pretende continuar com os estudos no Doutorado, constatou que a aplicação da lei sempre precisou ter, como principal alvo, algum arquétipo ligado a tensões sociais combatidas pelos governos. Se na década de 40, a criminalização estava nos sambas de malandro (que duraram até as décadas seguintes, como nos casos em que Bezerra da Silva foi censurado, principalmente nos anos 70 e 80), a partir dos anos 90, a ascensão do rap e do funk com músicas abordando as novas dinâmicas de violência das favelas e periferias, o eu-lírico retratado – agora um bandido, e não mais um malandro – resultou em novas acusações de apologia e consequente a associação desses artistas ao tráfico de drogas.

O resultado foi o início da criminalização do funk, com diversos casos emblemáticos de prisão ou de denúncia ao Ministério Público, principalmente a partir dos anos 2000. Começa-se a popularizar a expressão “proibidão” para músicas que faziam menção ao crime nas favelas, mas, em sua pesquisa, Emerson também identificou momentos em que o funk mainstream — aquele também difundido de forma massiva nas rádios — também enfrentou problemas com a Justiça.

“Estamos falando de uma situação de desproporcionalidade. A apologia da lei acontece de acordo com o personagem que existe ali na música e que o Estado quer combater no momento, seja ele o malandro, bandido, traficante, ou funkeiro, é muito político o motivo: a arte imita a vida. Mas se temos muitas músicas de fato que falam do tráfico, também temos música de milícia, o proibidão de policiais milicianos, porque essas organizações usam a música como uma forma de se reafirmar no território e na população em geral, a música é uma ferramenta de identidade do que já está formado”, reflete Luã.

Prova insuficiente

Para Guilherme Suguimori Santos, advogado especializado em direito criminal, uma letra de música não pode ser suficiente para acusar alguém de estar ligado ao crime organizado. O advogado explica que é normal a polícia se sentir agredida e buscar por respostas mais rápidas, mas que são situações muito propensas a interpretações distorcidas sobre a autoria da letra, e que exigiriam mais cautela jurídica. Ele avalia que, hoje, o olhar seletivo para a escolha dos crimes de apologia que serão punidos apenas abre brechas para situações injustas.

“O cidadão periférico já sofre com a falência estatal em prover serviços básicos que deveriam ser providos. Já sofre com a falta de segurança. Já sofre com o domínio do crime organizado. A resposta do estado é fazer ele sofrer também com a violência policial, a injustiça e ainda mais exclusão. E posteriormente, agora ele vai ter que sofrer também com a criminalização de manifestações que são resultado direto desse quadro. E é ainda outra injustiça, porque nós não criminalizamos o cidadão que fala “bandido bom é bandido morto”, ou que “traficante tem que morrer”. São crimes iguais, mas nós estamos optando por punir somente um.”, critica.

Print de publicação de policial apoiando as mortes causadas pela polícia durante Operação Escudo

Ele também enfatiza que prender o acusado durante a investigação por causa de uma letra deve ser uma ação a ser feita em último caso, e que não pode ser considerada a única prova: 

“A prisão processual, aquela que ocorre antes do julgamento final de um caso, é uma medida excepcional, a mais extrema à disposição do ordenamento judiciário, que só pode ser utilizada quando não existe outra alternativa, e somente se for absolutamente necessária para o bom andamento da investigação. Em um caso em que alguém grava um vídeo musical dizendo que pertence ao crime organizado, a prisão dele é a única alternativa para o bom andamento da investigação? Não sei. Teríamos que verificar outros elementos: há indícios de atividade criminal verdadeira por essa pessoa? Isso é plausível ou era meramente uma música, em um cenário onde muitas músicas falam disso? Que informações concretas temos sobre isso? Mesmo que houvesse, são fatos recentes? O investigado solto pode inviabilizar o andamento dessa investigação?”, questiona.

Luã Ferreira também acredita que a aplicação do artigo 287 acaba fechando os olhos para situações como as dos policiais que comemoraram as mortes das chacinas já que, ele lembra, há uma conveniência em criminalizar apenas o que está associado a uma realidade já marginalizada e ignorada pela política. 

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“É claro que o funk seria atrelado a dinâmicas da violência, porque naturalmente fala de alguns contextos de vida na periferia. E quando você associa a criação do artista de personagens que representam o crime que o Estado quer combater, você desumaniza as pessoas que estão contando essas realidades nas suas músicas: olhando dessa forma, não é mais uma pessoa, um artista cantando sobre o que ele e seu público vive, ele é um marginal, e isso justifica medidas repressivas segundo o Estado”, critica.  

O que diz a polícia

Questionada a respeito das publicações realizadas nas redes sociais por policiais que estavam comemorando as mortes causadas na Operação Escudo, a Secretaria de Segurança Pública não respondeu às perguntas, e se limitou a enviar uma breve nota sobre o caso.

Veja nota na íntegra:

Policiais civis prenderam em flagrante um homem, de 21 anos, por associação criminosa, na tarde desta quinta-feira (3), no Parque Estuário, em Guarujá. Após trabalho de investigação, o suspeito foi identificado e localizado em sua residência. Ele foi conduzido à 1ª DIG da Deic do Deinter 6, onde o caso foi registrado.

Esta reportagem foi atualizada às 19h50 do dia 7/8/2023 para incluir mais detalhes sobre a prisão de Adelso.

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