Policiais que participaram da ação que tirou a vida de Mizael Fernandes da Silva, em Chorozinho, região metropolitana de Fortaleza, continuaram insistindo na versão de legítima defesa; tia reconheceu PM que matou menino com tiro de fuzil enquanto dormia
Após sete meses, a reconstituição do assassinato de Mizael Fernandes da Silva, 13 anos, morto dentro de casa enquanto dormia, finalmente foi realizada. Mizael foi executado com um tiro de fuzil a queima roupa em uma ação da Cotar (Comando Tático Rural), da Polícia Militar, em Triângulo, no Chorozinho, 72 km de Fortaleza, no Ceará, em 1 de julho de 2020.
A agricultora Lizangela Rodrigues Fernandes da Silva Nascimento, 38 anos, tia de Mizael e principal testemunha do caso, teve 233 dias para se preparar e reviver a execução do sobrinho, mas, mesmo assim, precisou ser forte. “Eu pensei que seria mais duro, mas como eu estou atrás de justiça foi tranquilo”, conta em entrevista à Ponte.
Desde o começo, os policiais militares que participaram da ação, o sargento Enemias Barros da Silva e o soldado Luiz Antônio de Oliveira Jucá, afirmam que agiram em legítima defesa porque Mizael estaria armado. O tenente-coronel Paulo André Pinho Saraiva, responsável pelo Inquérito Policial Militar, afirmou no documento que os policiais efetuaram os disparos porque Mizael teria se negado a soltar uma arma que estaria com ele. Lizangela nega veementemente que Mizael estivesse armado. Os policiais ainda não foram denunciados pelo crime.
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A reconstituição começou às 23h da última quinta-feira (18/2) e terminou às 5h da sexta-feira (19/2). Além da família de Mizael, participaram da simulação os dois PMs e três promotores do Ministério Público, dois de Fortaleza e uma de Chorozinho, e também representantes da Delegacia de Assuntos Internos (DAI) da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) e da Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce).
Em nota, o MP-CE afirmou que, inicialmente, o IPM apontou que “os dois policiais miliares envolvidos na ação agiram em legítima defesa, versão contestada pelo MP-CE, que concluiu que houve excesso na ação policial e que o caso deveria ser transferido para a Vara do Júri de Chorozinho”.
“Primeiro colocaram meu esposo e meu filho na calçada para escutar os tiros, deram cinco tiros dentro de casa para que o meu esposo reconhecesse. Aí perguntaram qual dos tiros ele ouviu na madrugada que o Mizael foi morto. Meu marido respondeu que, sem dúvida, havia sido o primeiro. Ai os peritos disseram que ele estava certo, que o primeiro tinha sido de fuzil”, comta Lizangela.
Ela afirma, sem pensar duas vezes, que o sargento Enemias foi o PM que atirou em Mizael. Quando chegou perto dele na reconstituição, lembra, Lizangela achou que passaria mal. “Eu não culpo todos, eu culpo só o Enemias, que foi quem atirou”.
“Eles mentiram e eu comecei a gritar. Eles disseram que tinham batido no portão e pedido para abrir, eles não agiram desse jeito. Depois, ele mentiu de novo dizendo que naquele dia só saíram três pessoas da minha casa, não lembrou do meu tio e do meu outro filho”.
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Lizangela conta que os PMs continuam com a versão de legítima defesa, de que Mizael estaria armado e resistiu aos pedidos da Polícia Militar para abaixar a arma. “Pedi a ele [Enemias] que parasse de dizer que foram dois tiros, porque foi um tiro. Ele disse que entraram os dois policiais e mandaram Mizael abaixar a arma, mesmo sendo desmentido pela vizinhança e pela gente, que não teve uma conversa dentro de casa”.
“O Mizael estava dormindo, como um menino de 13 anos estaria dormindo e com uma arma? Mizael nunca pegou em uma arma. Eu disse para eles que para matar Mizael bastava ter acordado ele, porque quando ele visse a polícia ele ia morrer de medo. Eles insistem nessa versão, mesmo a perícia mostrando que não tinha digital do Mizael na arma. Mizael já chegou morto no hospital, mas ele [Enemias] diz que Mizael saiu conversando”, completa a tia.
Em um momento, lembra Lizangela, ela confrontou Enemias e pediu para ele respondesse uma pergunta que ela havia feito há sete meses. “Para que era a abordagem?”. “Se ele tivesse dito para o que viria, eu teria dito para ele esperar porque tinha uma criança dormindo no quarto. Ele perguntou quem tava acordado, não quem tava dormindo. Ele tava muito calmo, ele não era aquele policial do dia da execução”.
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Lizangela detalha que os PMs não queriam ser reconhecidos na madrugada da reconstituição, mas que ela afirmou que só iria embora depois de realizar o procedimento. “Os policiais não queriam tirar foto e não queria que a gente reconhecesse. Eu falei que não iria embora sem provar a inocência do Mizael”.
“O perito me perguntou: quem você acha que matou o Mizael? Eu disse que não achava, que eu tinha certeza que foi o Enemias. E o Luiz ficou comigo. O outro policial quer dividir a culpa com o Enemias, mas ele ficou do meu lado, quando entramos Enemias já tinha atirado no Mizael. Como ele sustenta a palavra que entraram os dois?”, questiona.
A tia também conta como sua vida mudou desde que os PMs mataram Mizael dentro de sua casa. “Minha vida acabou, a gente perdeu a nossa liberdade. Eu perdi meu útero, porque tive sangramentos, meu marido teve derrame. Passamos por dificuldades financeiras, mas queremos é a justiça. Eu tive que sair da minha casa, que era própria, para morar de aluguel, ficar pulando de um lugar para o outro”, lamenta.
À Ponte, Leidiane Rodrigues Fernandes, 32 anos, mãe Mizael, conta que perder o filho a fez perder a vontade de viver. “No fim do ano eu tentei me matar para estar perto do meu filho. Agora tomo remédio controlado para ficar bem, estou fazendo acompanhamento psicológico. Está difícil”, lamenta. “A Edna [das Mães do Curió] tem me ajudado muito”.
A expectativa para o futuro, afirma Leidiane, é “que aconteça logo o julgamento e que eles sejam condenados, que não passe só um ou dois meses preso, mas que ele pague pelo crime”. “Hoje um policial é preso, dois dias depois tá solto. Ele matou um pedaço de mim, ele matou a minha vida. Ele derrubou os sonhos do meu filho. Eu quero que Deus e o juiz olhem o que eles fizeram”, finaliza.
Edna Carla Souza Cavalcante, 49 anos, líder dos movimentos Mães do Curió e Mães da Periferia de Vítima Por Violência Policial do Estado do Ceará, conta como funciona o trabalho que faz com as mães que perderam os filhos pelo braço armado do Estado. “Acolher as mães para buscar justiça é muito importante. Leidiane também é vítima do Estado. Dar esse suporte para as mães é fundamental. É uma luta de muita responsabilidade, porque sabemos que o Estado é assassino”.
Outro lado
A reportagem procurou a Polícia Militar e a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social e aguarda retorno. Também solicitamos, aos órgãos, entrevista com os PMs Enemias e Luiz.
A Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) enviou nota dizendo que “por meio da Delegacia de Assuntos Internos (DAI), informa que aguarda laudo da reprodução simulada dos fatos inerentes ao caso ocorrido no município de Chorozinho, que vitimou o adolescente Mizael Fernandes, para finalizar o inquérito e novamente remetê-lo à Justiça. A reconstituição foi realizada na semana passada e conduzida por uma equipe da Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce). Além da Controladoria/DAI, representantes do Ministério Público do Estado, por meio da Promotoria de Justiça de Chorozinho e Núcleo de Investigação Criminal (Nuinc) também acompanharam a ação.
Vale ressaltar que, anteriormente, o procedimento já havia sido encaminhado à Justiça com o indiciamento de três policiais militares – um (1) por homicídio e fraude processual e outros dois (2) por fraude processual, no entanto retornou a DAI para realização de reconstituição.
Além disso, a Controladoria também determinou a instauração de procedimento disciplinar para devida apuração do fato na seara administrativa, estando este, atualmente, em trâmite”.
Já o Governo do Estado do Ceará, comandando por Camilo Santana (PT), informou por meio de nota que “através da Secretaria de Saúde do Estado (Sesa) acompanha o trabalho de assistência em saúde mental oferecido pela Prefeitura de Chorozinho-CE a Leidiane Rodrigues da Silva. Técnicos de três níveis da Sesa (Central, Superintendência de Fortaleza e Área Descentralizada de Saúde de Cascavel-CE) auxiliam a rede de apoio oferecida pelo município e articulam ampliação dos serviços prestados”.
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