Artigo | A branquitude no tapete vermelho

    Wagner Moura e a equipe do filme segurando a placa de Marielle é o resultado da incoerência imagética que o nosso país reproduz há séculos

    Wagner Moura com Seu Jorge e Bruno Gagliasso e na outra imagem fazendo protesto contra impunidade no caso Marielle | Foto: reprodução/Instagram

    Eu fiquei extremamente feliz quando saiu a notícia que o Wagner Moura ia colocar a história de Marighella no cinema. Achei muito estratégico por se tratar de um artista que fala pra uma galera, por ser ele um ator com um alcance popular gigante. Fiquei muito animada em saber que a história de Marighella seria contada no shopping de Nova Iguaçu e nas periferias do Brasil. Cheguei a pensar que esse filme poderia ser aquela aula de história que a gente nunca teve, que o cinema, ainda que branco, poderia contribuir com um novo marco na história do nosso povo e do nosso cinema. Vi ali que era a hora de falar de uma vida negra de uma outra forma, com autoestima, com importância histórica. Comemorei mais ainda quando o Mano Brown estava entre os possíveis nomes que viveriam Marighella. Aí, pra mim, foi a festa.

    Eu não assisti ao filme e quero muito assistir. O discurso do Wagner Moura é uma importantíssima análise histórica sobre como o Estado brasileiro é racista, e que, qualquer existência negra nesse país está fadada a morte. Há uma importância em se falar disso na frente das câmeras do mundo. A mim, parece não ser mais do que a obrigação de alguém que queira contar a história de uma pessoa como Marighella. Mesmo assim, acho importante não ter esquecido de Marielle Franco ao explanar a evidência de uma prática racista que atravessa tempos.

    No entanto, nos últimos dias, vimos uma discussão importante, daquelas aulas que nunca tivemos na vida, acontecendo nas redes: a festa de Donata Meirelles e a reprodução de um racismo estético. Eu, como mulher negra, aprendi muito com essa discussão, mesmo sabendo que essa história não é novidade nenhuma.

    A foto do tapete vermelho em Berlim, com Wagner Moura e a equipe do filme segurando a placa de Marielle, é o resultado da incoerência imagética que o nosso país reproduz há séculos. Para mim, o cinema brasileiro continua sendo a grande festa de Donata Meirelles. Se colocarmos uma foto do lado da outra, não há diferença alguma. Esteticamente é parecido. O que muda, talvez, é que uns ainda estejam, de fato, presos à ideia da Casa Grande e Senzala no original. Do outro lado, pessoas que acham que a saída é dizer o nome de Marielle, posando pra foto, sem entender que Marielle foi uma parlamentar que lutou incansavelmente por um tapete vermelho onde jovens negros estivessem vivos, contando suas histórias.

    Não consigo compreender a emoção de vocês com esses vídeos que estão circulando porque é de uma incoerência sem tamanho. Temos ali pessoas conscientes do processo histórico de colonização, do racismo e como as instituições brasileiras (inclusive a Ancine) perpetuam a morte simbólica e física de pessoas negras. É incoerente se emocionar, mesmo com tudo que estamos vivendo, com o que não dá mais para existir, arruinando, e mesmo assim o protagonismo da fala estar em corpos brancos, num contexto de um filme como Marighella. É incoerente gritar “Marielle vive, Marighella vive” sem convidar pretos para construir essa democracia que vocês dizem pensar. Enquanto essa lógica existir, podem gritar o Lula Livre que for, a palavra de ordem que for, mas vocês continuarão servindo o grande #DoShow50

    Não há avanço nenhum em contar a história dos pretos sem os pretos. A incoerência branca de vocês é sempre a mesma. Vocês fazem questão de dizer que leem mulheres negras, que estão reformulando as suas bibliografias, o que vocês estão aprendendo? Nada?

    *Yasmin Thayná é cineasta e diretora formada pela Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Dirigiu “Kbela, o filme”, filme garantiu a participação na Sessão Black Rebels do Festival de Roterdã e no principal Festival de cinema negro no continente africano, o FESPACO, em Burkina Faso. Dirigiu a série “Política: modo de fazer- segunda temporada”, da Globo News, exibida durante o ano de 2018, o documentário “Batalhas”, entre outros. Em 2019 lança “Fartura” seu mais recente filme independente. Fundou a Afroflix, plataforma de distribuição de conteúdos produzidos por profissionais negros.

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