Artigo | A família da cela 9

    Nos primeiros dias na prisão, Babiy Querino ganhou uma nova família que lhe deu forças para resistir aos dias reclusa

    Em entrevista à Ponte, Babiy lê uma das cartas que recebera na cadeia, uma outra forma de reunir forças | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Como muitos de vocês já leram o primeiro texto, contei brevemente sobre minha chegada à cadeia. Iremos nos aprofundar cada vez mais para que vocês entendam o exato momento em que prometi a mim mesma que contaria ao mundo o que passei, as pessoas que conheci e como superei tudo!

    Bom, a maioria das pessoas acham que ao chegar numa cadeia você é mal tratado e todas aquelas coisas que vemos na TV. Mas, de antemão, vou reforçar algo que vocês estão cansados de saber: A TV muitas vezes é sensacionalista! E cria a imagem de que presidiárias são monstros, fazendo com que as pessoas passem a ter medo.

    Sabe quando você chega na escola, não conhece ninguém e fica quieta por medo de ser rejeitada? Então, ao entrar na cela foi o que fiz. De alguma forma, mesmo assustada, eu queria que elas me aceitassem, eu precisava desabafar com alguém, precisava chorar por estar naquele lugar. Ainda estava tentando entender como fui parar lá dentro.

    Lembro perfeitamente quando uma menina chamada Daisy me chamou para conversar. Eu estava meio receosa, mas acabei indo. Ela era tão calma que conseguiu me transmitir aquela calmaria e começamos a conversar. Daisy tinha minha idade, estava apenas uma semana presa e também injustamente.

    Tornamo-nos amigas desde então, éramos três: eu, ela e a Tia Lenice, uma senhora de aproximadamente 56 anos e que estava lá por causa de um B.O. (sigla para Boletim de Ocorrência, mas que no jargão das prisões significa algum crime cometido) de dez anos atrás. Ela havia chegado junto com a Daisy. Éramos nós por nós, uma ajudava a outra até que fizemos amizade com as demais.

    Foi a partir deste dia que passei a entender a música do MC Tikão “Família”, ainda mais a parte em que ele fala: “Aqui dentro a gente vira amigo, a gente faz amigo, a gente vira irmão. Porque aqui dentro a gente dorme, acorda junto e todos os momentos da tristeza ou da alegria, estamos juntos aqui dentro! Então, somos uma verdadeira família”. Fui acolhida de uma forma que não esperava, realmente éramos uma família. A família cela 9!

    Nossa cela era muito unida. Cheguei sem absolutamente nada e as meninas me ajudaram em tudo: creme de cabelo, shampoo, sabonete, pasta de dente, desodorante, etc. Até que eu comecei a fazer unha em troca de cigarro (o dinheiro da cadeia) para poder comprar minhas coisas. Geralmente na galeria (pátio), meninas passavam vendendo algumas coisas.

    No começo é muito difícil de se adaptar, até porque você está convivendo com pessoas que nunca viu na vida e numa situação em que o dilema que você tem que carregar é: não confie em ninguém, pois na cadeia você vale o que tem. Mas estou aqui para dizer que isso não é verdade, pois algumas das melhores pessoas que conheci na minha vida são presidiárias.

    Quando falo em adaptação penso muito na comunicação. Cadeia não é um bicho de sete cabeças e se adaptar não é tão difícil como se pensa. Como antes da minha prisão sempre fui uma pessoa muito extrovertida e de fácil comunicação, isso não foi um empecilho para mim.

    Todos os finais de semana o rádio descia para o raio e ficávamos dançando funk na cela. Lembro que um dia eu estava fazendo faxina e algumas meninas estavam do lado de fora me chamando para dançar, como eu não queria ir elas me puxaram e acabei indo. Foi a partir daquele dia que comecei a ser conhecida como a “Dançarina do raio 4”.

    Sempre fazíamos competições valendo alguns kits de higiene e isso foi me ajudando até minha mãe atracar (termo usado para a visita). Fora que sempre me procuravam para que eu as ensinasse a dançar e foi ficando mais fácil minha adaptação, pois passei a conhecer praticamente todas as meninas do raio.

    O funk sempre foi muito presente na minha vida de dançarina, até porque antes mesmo do Dancehall eu já dançava funk e na cadeia não foi diferente, pois eram muitas meninas novas e que frequentavam bailes funks.

    As dificuldades vieram no decorrer do tempo, mesmo que eu já havia me enturmado com minhas companheiras, ainda não tinha nada. Fazia unha a semana inteira para poder ter cigarro e assim conseguir minhas coisas. Quando estava chegando perto do dia da minha faxina já vinha a preocupação e, mesmo que eu pudesse contar com as meninas, não me sentia bem.

    Assim que chegou dia 1 de fevereiro d e 2019, comecei a ficar aflita, pois ainda não tinha noticias da minha mãe, do processo e eu sabia que passaria meu aniversario naquele lugar. Lembro que assim que todas dormiram fui até a capa (grade) e como eu sabia que o dia seguinte (sexta- feira, 2 de fevereiro, dia de Yemoja), comecei a rezar. Pedi muito a ela respostas, pois precisava entender o motivo de estar naquele lugar e como dia 3 era meu aniversário comecei a chorar ao pensar que passaria presa.

    No dia seguinte me chamaram para a defensoria, me troquei e fui feliz, pois iria de fato falar com alguém. Assim que subi conversei com a defensora e ao sair me levaram para outra sala para falar com meu primeiro advogado. Lá ele me disse tudo o que estava acontecendo no processo, recados da minha mãe e a campanha que minhas amigas estavam fazendo. Aquilo acalmou meu coração. Voltei para o raio agradecendo Yemoja por ter respondido meu apelo.

    Os dias se passaram e como a grade da minha cela havia quebrado, tínhamos que trocar de cela e assim as funcionarias nos dividiram. Ficamos todas muito nervosas, pois dia seguinte era visita e sempre arrumávamos a cela para receber nossos familiares.

    Acabei sendo fraca, não aguentei toda aquela situação, aquele estresse, aquele descaso das funcionarias, pois era só abrir no manual. Mas não, elas queriam nos testar. E foi naquele dia que coloquei meu primeiro cigarro na boca!

    No dia seguinte estava chovendo, sempre acordávamos as 5 horas da manhã para tomar banho (gelado), organizar a cela e esperar as famílias começarem a entrar. Em uma das orações que fazíamos na galeria comecei a me arrepiar e me assustei, pois isso nunca havia acontecido comigo lá dentro.

    Resolvi ir para o parlatório/banheirão (era onde quem não tinha visita ficava), falei para uma companheira me acordar assim que acabasse a visita e fui dormir. Do nada começam a chamar “Bárbara da cela 9”, as meninas me acordaram e falaram “Babiy qual e seu sobrenome?”, respondi que era Querino e elas falaram “Você mesmo, sua visita chegou”.

    Levantei correndo, chorando dizendo “Oxi, minha mãe”, eu não estava acreditando. Assim que cheguei à viúva (onde a visita entrava), minha mãe estava chorando e corri para abraçar ela. Minha primeira visita foi dia 17 de fevereiro, um dia antes de eu completar um mês no raio.

    Naquele momento minha agonia passou e um peso saiu das minhas costas. Mesmo sabendo que minha mãe teria que ir embora, tentei curtir ao máximo sua presença. A parte mais dolorosa é o adeus. De repente tocou o primeiro sinal, ele era como um aviso que as visitas deveriam ir arrumando as coisas para ir embora. Daqui a pouco as meninas se reuniram no meio do pátio e gritaram “Salve galeria, salve galeria. Vamos soltar o anjo” e assim fomos da cela 1 à cela 9 cantado:

    Jacó segurou o anjo, segurou o anjo e são subir.

    Jacó segurou o anjo, segurou o anjo e são subir.

    E o anjo perguntou: o que queres que eu te faça?

    A cela 1 respondeu:

    Me dá meu alvará pra mim (sic) sair daqui, me dá meu alvará pra mim (sic) sair daqui.

    Após passarmos em todas as celas, fomos em direção à viúva só que dessa vez cantando:

    Jacó segurou o anjo, segurou o anjo e são subir.

    Jacó segurou o anjo, segurou o anjo e são subir.

    E o anjo perguntou: o que queres que eu te faça?

    A galeria respondeu:

    Me dá meu alvará pra mim (sic) sair daqui, me dá meu alvará pra mim (sic) sair daqui.

    Eu não queria falar.

    Ô lugar, ô lugar.

    Manda o meu alvará.

    Manda já, manda já.

    Quando a sua cota pagar.

    Já paguei, já paguei!

    E assim as visitas foram se despedindo. Eram mães, filhos, irmãos, avós, todos chorando. Aquela cena mexeu e mexe com minha mente toda vez que lembro. Quando minha mãe se despediu chorando, olhei pra ela e cantei “Prometi não chorar, prometi não sofrer…”, tudo para que ela parasse de chorar e fosse embora em paz. Eu disse a ela que me virava, não tinha medo de nada!

    Assim que todas as visitas foram embora, voltamos para a cela para esperar a contagem da noite. Éramos contadas três ou mais vezes por dia. Depois tomávamos banho, sentávamos todas e apenas três pessoas serviam a alimentação da visita. Era sempre eu, a Daisy e o Menor!

    Após o jantar, limpávamos a cela e todas iam para suas camas pensar e chorar, algumas porque tiveram visita e viram a dor da família e outras porque nem visita tiveram.

    Definitivamente a parte mais dolorosa de estar presa é a partida da família. E pensar em um milhão de coisas que devem ter acontecido para que o familiar não tenha conseguido ir, pensar nas dificuldades que estão passando do lado de fora e pensar que terá mais uma semana pela frente até a próxima visita.

    Aqui, caros leitores, resumi algumas coisas sobre minha adaptação na cadeia para que facilite a compreensão de vocês sobre muitos dos pontos de vista que tenho hoje.

    Texto publicado originalmente no Papo 10, na plataforma Medium

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