A diversidade existente na sociedade brasileira também deve estar presente nas instituições para que elas se tornem mais democráticas e não reflitam apenas os anseios e experiências de um determinado e privilegiado grupo
A ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se aposentou nesta quinta-feira (28/9). A Constituição Federal prevê a aposentadoria compulsória para os ministros e ministras que completarem 75 anos de idade.
Antes da sua aposentadoria Rosa Weber entendeu por bem incluir na pauta de julgamento processos de grande relevância para a sociedade brasileira: o marco temporal (em 21/9 o STF rejeitou a tese do marco temporal que, em linhas gerais, tinha o objetivo de delimitar a demarcação das terras indígenas ocupadas a partir da Constituição Federal de 1988), descriminalização do aborto e o início do julgamento dos participantes dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Mas este artigo não objetiva analisar a atuação da ministra Rosa Weber e os processos que ela incluiu para julgamento antes da sua aposentadoria, e sim trazer elementos para responder à seguinte pergunta: quem será indicada ou indicado para ocupar este importante posto?
O Supremo Tribunal Federal é conhecido como guardião da Constituição Federal, o que significa dizer que, dentre outras funções previstas no artigo 102 da Constituição, o STF julga casos em que há infração ou ameaça a dispositivos constitucionais. Em outras palavras, o Tribunal visa garantir a integridade e o cumprimento dos dispositivos constitucionais por todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), em todo o país.
O STF é composto por 11 ministros escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Os ministros e ministras do STF são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado.
Em 28 de fevereiro de 1891, quinze juízes presididos pelo Visconde de Sabará reuniram-se na sede do antigo Supremo Tribunal de Justiça, na zona central do Rio de Janeiro. A sessão, marco histórico no país, inaugurou as atividades do órgão máximo do Judiciário brasileiro.
Por essa instituição secular já passaram 171 ministros, sendo 168 homens e apenas três mulheres. Se fizermos o recorte racial, o STF teve apenas três ministros negros, todos homens: Pedro Lessa (1907-1921), Hermenegildo de Barros (1919-1937) e Joaquim Barbosa (2003-2014).
Analisando esses números pela perspectiva de gênero, das três mulheres que foram indicadas ao STF, nenhuma delas é negra: Ellen Gracie (2000-2011), Rosa Weber (2011-2023) e Carmen Lúcia (2006).
Se a própria constituição estabelece que qualquer cidadão brasileiro com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada poderá ser indicado para a mais importante corte brasileira, qual o motivo da inexistência de representatividade das mulheres negras no tribunal mais importante do Brasil?
A ausência de representatividade no STF revela a ausência de representatividade no Judiciário como um todo. Em recente pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 1,7% dos magistrados e magistradas do país que participaram da pesquisa se autointitulam como pessoas pretas e 12,8% pardos (as).Trazendo esse número para a perspectiva de gênero, há um verdadeiro abismo entre as raças.
Ao analisar o perfil de gênero e raça da magistratura, Ministério Público e Defensorias Públicas, Ela Wiecko Volkmer de Castilho e Carmen Hein de Campos, em artigo na revista iGAL concluíram que “a desigualdade de gênero é racializada e obedece a uma ordem de gênero que mantém a hegemonia masculina branca. No âmbito dos Tribunais Superiores e na Procuradoria-Geral da República é muito baixa a participação de mulheres. Isto se deve ao critério de nomeação política dos seus integrantes, que obedece a interesses do Executivo e do Congresso Nacional, em que as mulheres também estão sub-representadas. Ou seja, os critérios políticos de escolha tendem a excluir as mulheres. Nesse sentido, a discussão feminista, por um lado, deve se preocupar com a forma de indicação de magistrados para os Tribunais Superiores e de membros do Ministério Público para a PGR e, por outro, com o aumento da representação política das mulheres”.
Ou seja, a falta de representatividade reflete também nos cargos que dependem de indicação. A título de exemplo, o conhecido quinto constitucional estabelece que “um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes”.
Ora, se as mulheres negras são pouco representadas nesses espaços, fica muito difícil sua nomeação para os cargos em que a indicação serve como critério de nomeação.
Outro exemplo: o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é composto, no mínimo, por sete membros, sendo três ministros do STF e dois do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que são escolhidos mediante eleição em voto secreto. Além disso, o presidente da República nomeará dois juízes dentre seis advogados com notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo STF.
Salvo exceções — e precisamos tratar como exceção em razão da própria composição da sociedade brasileira, na qual é flagrante a importância numérica da mulher negra no Brasil — esses cargos são ocupados por homens brancos, héteros, provenientes das camadas mais abastadas da sociedade brasileira, o que significa dizer que estamos distantes de acompanhar a indicação de uma mulher negra para ocupar um lugar no TSE.
O Brasil, com toda sua particularidade, caracteriza-se pelo pluralismo cultural e diversidade racial que infelizmente não é vista nas instituições públicas, sobretudo no Judiciário. A diversidade existente na sociedade brasileira também deve estar presente nas instituições para que elas se tornem mais democráticas e não reflitam apenas os anseios e experiências de um determinado e privilegiado grupo.
Essa diversidade, portanto, servirá como ponto de partida para a construção de uma sociedade atenta às especificidades de todas as camadas sociais e das suas experiências históricas que refletem no presente.
Desde a abolição da escravidão em 1888, a mulher negra ocupa o lugar mais baixo da hierarquia social e essa situação foi diagnosticada por diversas estudiosas e estudiosos que se debruçaram sobre as vicissitudes da formação social brasileira.
Lélia Gonzales, por exemplo, ao analisar estudo produzido na década de 70, diagnosticou que a mulher negra ganha menos que a mulher branca e está submetida a trabalhos autônomos ou trabalhos não remunerados na agropecuária, como aponta em “Por um feminismo afro-latino-americano”.
Em artigo escrito em 1976, Beatriz Nascimento identificou algo que ainda se encontra presente no Brasil: há espaços que são ocupados através de critério racial que funciona como mecanismo de seleção: “o efeito continuado da discriminação praticada pelo branco tem também como consequência a internalização, pelo grupo negro, dos lugares inferiores que lhe são atribuídos. Assim, os negros ocupam aqueles lugares na hierarquia social, desobrigando-se de penetrar os espaços que estão designados para os grupos de cor mais clara, dialeticamente perpetuando o processo de domínio social e privilégio racial”.
Essa pungente característica da sociedade brasileira que revela que os cargos mais importantes são majoritariamente ocupados por homens brancos, com raras exceções de mulheres brancas, reflete na construção do imaginário e da identidade das crianças negras e das crianças brancas.
No artigo “Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência”, Sueli Carneiro já aponta logo na introdução que “mulheres negras no poder” é um tema praticamente inexistente e assim discorre sobre o impacto negativo da falta de diversidade em alguns espaços: “o racismo é assim, cruel. Ao instituir a superioridade de um grupo racial e a inferioridade de outro, geral diversas perversidades. A excelência e a competência passam a serem percebidas como atributos naturais do grupo racialmente dominante, o que naturaliza sua hegemonia em postos de mando e poder. Nunca ouvimos alguém se levantar, além da minoria de mulheres feministas ou militantes negros, quando o secretariado é composto em sua totalidade por homens brancos. Encara-se como natural. Não se coloca em questão se a competência ou a qualificação técnica foram devidamente contempladas nas nomeações. Menos ainda nos atos insanos quando um engenheiro assume uma pasta da cultura ou da saúde. Entende-se que isso se deva às composições partidárias, necessárias à governança. Ou, pior, em geral esses “seres superiores” são considerados naturalmente aptos, a despeito de sua formação ou trajetória profissional, para assumir qualquer cargo de poder. O estranhamento se dá quando esse mundo inteligível ao qual nos habituamos sofre alguma alteração. E, sobretudo, quando muda por ações intencionais ditadas pelo princípio democrático de respeito à diversidade. Somente quem pertence a grupos historicamente discriminados sabe dos inúmeros negros, das incontáveis mulheres e homossexuais que deixaram e deixam de ser lembrados para ocupar posições nas estruturas de poder por essa lógica de exclusão que o racismo e o ceticismo determinam”.
Retomando ao tema da falta de representatividade no Poder Judiciário brasileiro, sobretudo no STF, verifica-se a existência de uma homogeneização racial das pessoas que compõem esse poder. Ou melhor, demonstra-se uma homogeneização racial das pessoas que participam do processo decisório. Há uma espécie de solidariedade e empatia com as causas que convêm e todo o peso do ordenamento jurídico para as causas que pouco conhecem.
Adilson José Moreira, no artigo “Miscigenando o círculo do poder: ações afirmativas, diversidade racial e sociedade democrática”, defende a ideia de que a diversificação racial pode contribuir para a diminuição do racismo no país, uma vez que o aumento de homens negros e mulheres negras no Ministério Público e nos tribunais pode tornar mais eficaz o combate dessa chaga.
“A diversidade racial pode contribuir para a solução desse problema ao incorporar pessoas que têm a vivência social do racismo e que não estão comprometidas com interesses de grupo. Embora todos os indivíduos comprometidos com a democracia saibam que o racismo afronta a dignidade humana, eles não têm conhecimento de como ele opera no cotidiano da população negra e ameríndia. Dessa forma, a diversificação racial do sistema judiciário permite que essa instituição pública possa apresentar soluções mais adequadas à demanda social de tratamento igualitário entre grupos sociais, o que obviamente pode ser considerado como um interesse público de primeira ordem”, aponta o autor.
Para que se construa um Judiciário mais democrático e para subverter a lógica da exclusão nele imbricada, fundamental que a nomeação para cargos de grande relevância política, econômica, jurídica e social também seja apreciada pela perspectiva da diversidade racial.
Para além da diversidade, concluo esse breve arrazoado com a indicação de três mulheres negras que aliam refinada técnica, notório saber jurídico, reputação ilibada, pluralidade de pensamento e diversidade racial:
Adriana Cruz – juíza titular da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. Doutora em Direito Penal e professora da PUC-SP.
Lívia Sant’Anna Vaz – promotora de justiça do Estado da Bahia. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia e Doutora em Ciências Jurídico-Políticas em Lisboa.
Soraia Mendes – advogada. Doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília.
*Thiago Bernardo da Silva é paulistano, advogado e ativista de direitos humanos