Artigo | A polícia brasileira como mecanismo de estado de exceção permanente

Leia um trecho do livro “A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?”, de Almir Felitte, lançado pela Autonomia Literária

Ilustração Antonio Junião / Ponte Pornalismo

Ao analisar a história das polícias brasileiras, podemos constatar que, em mais ou menos dois séculos de desenvolvimento, estas instituições e as práticas de segurança pública no país, apesar das óbvias transformações, foram marcadas pelo continuísmo de alguns aspectos centrais a elas. São justamente estas persistências, aliás, que auxiliam a enxergarmos o sistema policial nacional na ideia de permanência do estado de exceção no Estado democrático brasileiro. Dentre estas práticas e características contínuas, três se destacaram na história policial brasileira e podem ser consideradas centrais ao sistema de segurança pública como mecanismo do estado de exceção permanente vivido no Brasil: o militarismo, a inquisitorialidade e as normas penais genéricas, abertas ou de perigo abstrato.

Sobre o primeiro ponto, por suas próprias características, o militarismo é uma ideologia incompatível com as atividades garantistas de policiamento. Desde a formação de seus profissionais, em relativo isolamento, a educação militarizada denota o rompimento que ela representa com o resto da sociedade e com a natureza civil da instituição policial. Soma-se a isto a organização hierárquica rígida e altamente verticalizada, na qual o poder decisório é concentrado e o espaço para o pensamento crítico é reduzido, favorecendo o crescimento dos sentimentos de preconceito entre os policiais para com cidadãos de classes mais pobres ou de minorias raciais. Situação problemática ampliada pela adesão das polícias militarizadas à chamada “ideologia do inimigo”, fruto de sua histórica instrumentalização por doutrinas de segurança nacional. Com todos estes aspectos, a estrutura da Polícia Militar torna-se extremamente porosa a práticas sistematicamente abusivas e violentas.1

A história do militarismo como ideologia imposta às polícias mostra como e porque estes problemas se manifestam na prática. Além do papel de controle sobre pessoas escravizadas em suas primeiras décadas, desde o Império, são várias incursões realizadas pelas Polícias Militares na repressão a revoltas populares e greves. A militarização como forma de controle sobre populações específicas e revoltosas foi clara, por exemplo, no debate entre autoridades paulistas na Velha República, quando cavalarias foram consideradas necessárias para conter greves, ainda que pouco eficientes para o policiamento cotidiano. O papel das PMs mineira e paulista no golpe de 1964 e a organização da Rota como polícia de combate a ações armadas de guerrilheiros são outros exemplos históricos da ligação entre o militarismo e a ideia de polícia como mecanismo de estado de exceção permanente. Traço repetido em democracia, como nos impactos negativos que o militarismo exerceu em experiências de policiamento comunitário em São Paulo ou nas UPPs cariocas, incluindo nestas uma lógica de ocupação territorial que submeteu comunidades a situações sistemáticas de violência estatal.

Neste último aspecto, é simbólica a relação entre os Consegs, a PM paulista e o policiamento comunitário, onde conselhos participativos formam espaços de embate ideológico pautados por discursos intolerantes e preconceituosos reproduzidos pelos chamados “cidadãos de bem”. Este termo não foi aqui empregado à toa. Em cartilha da própria PMESP, o policiamento comunitário é visto como conjunto de preceitos doutrinários voltado apenas aos “cidadãos de bem”, restando “aos infratores da lei e arredios às regras sociais” as normas e legislações vigentes. A cartilha, porém, não define expressamente o conceito de “cidadão de bem”, que vai se construindo no cotidiano policial em contraposição àqueles que “quebram a noção de ordem e boa conduta” ou “não se mostram submissos diante do ideal implícito de superioridade dos policiais ante os cidadãos comuns”. Setores como a população em situação de rua, os frequentadores de bailes funk e os defensores dos direitos humanos acabam excluídos deste conceito no dia a dia policial e nos espaços participativos, enxergados como inimigos desprovidos de direitos que devem ser combatidos permanentemente.2

Como se pode ver, a “ideologia do inimigo”, traço tão central à filosofia militarista, tem impacto direto nas práticas policiais cotidianas, vistas erroneamente como ações de combate a inimigos, e não de mediação entre cidadãos em igualdade. É a materialização das relações de inimizade descritas por Mbembe como base de apoio ao estado de exceção permanente das democracias modernas. Mas instituições policiais nada têm a ver com exércitos. Sob a perspectiva legítima de atividades de segurança pública, as polícias são destinadas a garantir direitos e liberdades aos cidadãos quando estes estiverem sob risco ou sendo violados. Uma prática que deve se realizar por meios pacíficos ou por uso comedido da força, associada à mediação de conflitos e com estrita observância da legalidade e dos direitos humanos. Já o Exército possui características organizacionais que atendem à necessidade do “pronto emprego”, essencial às ações tipicamente bélicas de defesa nacional, como a rigidez hierárquica verticalizada. Não faz sentido que as polícias se organizem de forma semelhante. Voltada à prevenção, as estruturas policiais se adequariam melhor a outros princípios de organização, como a descentralização, a valorização do trabalho na ponta, a flexibilidade do processo decisório e da adaptação às especificidades, logicamente, dentro dos limites da legalidade, a capacidade de mediação e a intersetorialidade. Princípios que se mostram diametralmente opostos às práticas de exceção militarizadas aqui criticadas.3

O segundo ponto na construção do sistema de segurança pública brasileiro como mecanismo de estado de exceção permanente é a inquisitorialidade, traço central do inquérito policial, peça pré-processual criada nos tempos imperiais que passou por poucas transformações até hoje, e do trabalho do delegado de polícia. Ao versar sobre o tema na atualidade, Nucci4 não difere muito da análise histórica sobre as origens do instituto. Para ele, a peça inquisitorial é “um meio de extirpar, logo de início, dúvidas frágeis (…), evitando-se julgamentos indevidos de publicidade danosa”, mas também garante a oportunidade de colher provas perecíveis. Esta celeridade ocorre por meio da falta de maior contorno judicial a um procedimento de caráter preparatório e preventivo. Considerando o indiciado como objeto de investigação, e não como sujeito de direitos, estas características definem algumas das peculiaridades do inquérito policial, tais como o sigilo, a falta de contraditório, a discricionariedade na colheita de provas e a impossibilidade de arguição de suspeição da autoridade policial que o preside.

Há quem defenda a pertinência destes aspectos. Renato Brasileiro5 considera a exigência de contraditório e ampla defesa numa fase pré-processual como o inquérito incabível, vez que ele não pode resultar diretamente em nenhum tipo de sanção. Além disso, a ausência destes pressupostos está ligada à busca da eficácia das diligências, pois observá-los resultaria em obstáculos à atuação da polícia, comprometendo a agilidade das investigações preliminares. Para Renato, “a falta de contraditório e ampla defesa nessa fase pré-processual acaba sendo compensada por mecanismos legislativos tendentes a evitar que o juiz julgue a imputação valendo-se exclusivamente dos elementos informativos colhidos na fase investigatória”.

Porém, vendo o sistema de processo penal brasileiro como um todo, observamos que ele tem um caráter misto, ou seja, com uma fase de instrução preliminar inquisitiva, referente ao inquérito, e uma fase de julgamento, predominantemente acusatória. Na primeira, há o procedimento secreto, escrito e sem contraditório, ao passo que, na segunda, temos a oralidade, a publicidade, o contraditório, a isonomia entre as partes, a separação entre órgão julgador e acusador, entre outros. Ao criticar quem aponta o sistema brasileiro como puramente acusatório, Nucci lembra que a realidade da prática forense se distancia dos princípios acusatórios garantidos constitucionalmente, vez que o inquérito exerce papel fundamental no processo, chegando até mesmo a produzir provas definitivas contra o réu, como no caso de certas perícias. Também não são raras as vezes em que magistrados fazem referência expressa a provas colhidas na fase inquisitória, para além de provas técnicas, incluindo depoimentos e até mesmo a confissão do indiciado.6

Assim, temos uma situação em que, embora a legislação faça uma previsão, a realidade cotidiana se expressa de outra forma. Baseada no preceito de que o inquérito, ao menos oficialmente, não tem capacidade de formar culpa, a norma permite que a autoridade policial que o preside se furte de respeitar princípios constitucionais tão caros aos processos judiciais, como o contraditório e a ampla defesa. Na realidade, esta peça construída de forma alheia aos princípios democráticos mencionados tem papel fundamental no dia a dia judiciário brasileiro, muitas vezes servindo de parâmetro único ou central para condenações criminais. Em suma, a inquisitorialidade do trabalho da Polícia Civil desemboca, ainda que indiretamente, na suspensão destes princípios às parcelas da população mais vulneráveis à arbitrariedade policial quando estas chegam ao Judiciário. Um verdadeiro mecanismo de estado de exceção.

Já veremos que a inquisitorialidade não é exclusiva do trabalho da Polícia Civil. Antes disso, por guardar relação com esta afirmativa, vamos ao terceiro mecanismo policial de estado de exceção permanente: o sistema penitenciário brasileiro foi costumeiramente alimentado por pessoas presas com base em normas penais demasiadamente abertas, genéricas, ou, ainda, de perigo abstrato. É o caso da criminalização da vadiagem, que, tipificando a mera conduta de não possuir sustento ou residência, foi, por anos, uma das grandes responsáveis pela imensa maioria da população carcerária brasileira ao lado da embriaguez, das desordens e das prisões para averiguação. O uso destas tipificações como forma de controle sobre a população negra, sobretudo após o fim da escravidão, e de estrangeiros perdurou por muitos momentos da história. De modo semelhante, as legislações de crimes políticos e sociais, fortemente pautadas por doutrinas de segurança nacional, também foram redigidas de forma bastante aberta e instrumentalizadas para o controle político-policial de oposicionistas, sobretudo em períodos máximos de exceção, como a Era Vargas e a Ditadura Civil-Militar. A partir dos anos 1970, a chamada “guerra às drogas”, iniciada nos EUA como forma de controle sobre estrangeiros indesejados e espalhada por todo o mundo, ensejou novo “modelo bélico” para o sistema de segurança pública. Com verbos penais que se multiplicaram ao longo do tempo e uma vaga e genérica defesa da saúde pública, a droga se converteu no grande eixo “sobre o qual se pode reconstruir a face do inimigo (interno) também num compatriota”.7

Nas palavras de Soares,8 “na ausência da antiga vadiagem, está à mão a lei de drogas”, e a situação de normas penais abertas à margem de interpretação e à arbitrariedade se deteriorou ainda mais na arquitetura policial brasileira de ciclo fracionado. Pressionadas por resultados por serem as instituições presentes diariamente nas ruas, a lógica de produtividade das Polícias Militares se voltou para efetuar um grande número de prisões. Por não poderem investigar, só lhes cabe prender em flagrante. Não à toa, a maior parte da população carcerária brasileira foi presa desta maneira. Crimes passíveis de prisão em flagrante, no geral, são aqueles visivelmente identificados, que ocorrem em espaços públicos. O “varejo que supre a cota de prisões da PM” não é o de criminosos do colarinho branco, mas o de personagens que agem na rua nesta mesma lógica de varejo: batedores de carteira, pequenos traficantes ou assaltantes, geralmente jovens advindos de classes mais pobres. Entre estas condutas tipificadas, nenhuma auxilia tanto a PM em sua “produtividade” quanto a política de drogas. A celeridade e a grande escala com que a criminalização de entorpecentes fomenta o sistema penitenciário brasileiro criou um verdadeiro processo de criminalização da pobreza e a consagração do racismo institucional. Grupos sociais mais vulneráveis se tornaram alvo preferencial de uma atividade policial cheia de preconceitos e estereótipos formulados por uma cultura corporativa marcada pelas desigualdades e pelo racismo estrutural da nossa sociedade. Fez-se o cenário em que, nos territórios vulneráveis, a tendência da PM é atuar como tropa de ocupação e enfrentar inimigos.

Além da problemática criminalização enxergada de modo expandido e arbitrário, estas normas penais encontram aspectos negativos que remetem, novamente, à questão da inquisitorialidade, que extrapola o trabalho exclusivo da Polícia Civil. Segundo levantamento do Núcleo de Estudos sobre Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP),9 analisados 667 autos de detenção por porte de entorpecentes na cidade paulistana entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, 74% destes contaram apenas com o testemunho dos policiais que realizaram a prisão. Dos casos acompanhados até o fim da fase processual, 91% confirmaram a versão policial em condenação, sendo que só 3% resultaram em absolvição e 6% em desclassificação para outro tipo penal. Ou seja, não bastasse a multiplicação dos verbos incriminadores da Lei de Drogas abrir margem para a interpretação arbitrária de policiais que atuam nas ruas de forma ostensiva, esta arbitrariedade ainda acaba sendo endossada pelo sistema de Justiça que, mesmo com fragilidade de provas, costuma confirmar a versão policial dos fatos.

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Assim, demonstramos como as três características apontadas nas estruturas policiais se relacionam e inserem o sistema de segurança pública do país no contexto de estado de exceção permanente. Não se tem a pretensão, aqui, de estabelecer apenas estes três aspectos como paradigmas exclusivos das práticas de exceção destas instituições. Nada impede que outros mecanismos tipicamente policiais possam ser apontados no mesmo contexto, embora estes sejam os que apareceram com maior destaque ao longo da história. A ideologia militar, a inquisitorialidade e as normas penais genéricas, de perigo abstrato ou demasiadamente abertas foram traços analisados desde o início do processo de desenvolvimento das forças de segurança pública no Brasil, todos diretamente ligados à construção das relações de inimizade que baseiam o conceito de estado de exceção permanente contemporâneo.

1 FELITTE, Almir Valente; PONZILACQUA, Márcio Henrique Pereira. O impacto social da organização militar da polícia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 132, ano 25, p. 193-217, jun. 2017. p. 214-215.

2 ASTOLFI, Roberta Corradi. et al. Excluir para legitimar: a disputa dos significados da segurança pública nas políticas de participação em São Paulo. In: OLIVEIRA JUNIOR, Almir (org.). Instituições participativas no âmbito da segurança pública: programas impulsionados por instituições policiais. Rio de Janeiro: IPEA, 2016. p. 151-154.

3 SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 32-34.

4 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 15 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 47-48.

5 LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2 ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 46-47.

6 NUCCI, op. cit., p. 49-50.

7 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 20, p. 129, out. 1997.

8 SOARES, op. cit., p. 34-43.

9 DE JESUS, Maria Gorete Marques, et al. Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo [recurso eletrônico]. Coord.: Maria Gorete Marques de Jesus. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2011. p. 55-78.

Este artigo é um trecho do livro A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?, lançado pela Autonomia Literária e que pode ser comprado aqui.

(*) Almir Felitte é mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP). Atualmente é advogado e academicamente atua nos seguintes temas: sociologia do direito, instituições policiais, segurança pública, direitos humanos e militarismo

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