Artigo | A Ponte nasceu ontem, há dez anos atrás

Uma das coisas que tem feito a Ponte durar é ser um projeto coletivo, que nasce como resposta a um anseio coletivo de milhões de brasileiros, de que suas vidas sejam integralmente respeitadas pelo Estado que sustentam

Imagem: Antonio Junião

“Fausto, conseguiu terminar o texto de dez anos da Ponte?”, perguntou minha amiga Jessica Santos, nossa editora de relacionamento, no final da tarde de terça-feira. 

Pensei em responder: não consegui escrever algo que prestasse até agora e acho que vamos ter que desistir da ideia de mandar essa newsletter especial para nosso povo.

Mas, em vez disso, falei com naturalidade:

“Vou terminar só à noite. Acho que podemos disparar amanhã de manhã?”

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“Será a solução”, respondeu Jessica, diplomaticamente. Talvez ela devesse ter dito “para de me enrolar”, mas é educada demais para isso. De um jeito ou de outro, a newsletter precisa ser disparada em algum momento deste 26 de junho, quando a Ponte Jornalismo completa exatamente dez anos.

Acontece que, de repente, a tarefa se mostra grande demais para mim. Como dar conta de falar de uma década inteira de uma das iniciativas de jornalismo mais corajosas, originais e necessárias já surgidas no Brasil? Como falar com precisão das centenas de pessoas inocentes, a maioria jovens negros, que haviam sido presos por acusações falsas e conquistaram a liberdade graças às nossas reportagens? Como falar com justiça, sem esquecer de ninguém, das tantas pessoas que nos ajudaram nessa caminhada, do carinho e do apoio que recebemos ao longo dos anos, sem esquecer também dos xingamentos, das ameaças, das censuras judiciais, das prisões, bombas e balas de borracha em nossa equipe? Como falar dos tantos governantes que foram responsabilizados pelos seus crimes contra os direitos humanos e… bom, nesse caso seria fácil, porque não teve praticamente nenhum, e não só nesses dez anos, mas em mais de quinhentos anos de Brasil. Mas essa é outra história.

Não dá. Simples assim. Vou responder para a Jessica que pode pedir o texto a outra pessoa. Que outra? A resposta é que não há. Dos que estiveram com a Ponte desde o comecinho, em 2014, e continuam aqui até hoje, só restaram eu e o Junião — e ele prefere desenhar, não escrever, embora também escreva muito bem. Não tem jeito. Mesmo que não esteja à altura da tarefa, vou ter que abraçá-la, simplesmente porque não tem outro jeito.

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E é bem esse o espírito de uma iniciativa como a Ponte. É tão ambiciosa que é difícil acreditar que alguém de carne e osso possa estar à altura do desafio. Estamos falando de um veículo jornalístico que se propõe a combater a longa trajetória de extermínio da população negra e pobre pelo braço armado do Estado e que diariamente expõe as mentiras que policiais, promotores, procuradores e magistrados contam para justificar as matanças. É uma missão que, se eu parasse para pensar, nunca abraçaria. Vou eu me meter a fazer algo assim? Claro que não. Deve ter gente melhor para dar conta disso.

Quando penso nos dez anos que vivi com a Ponte, sinto na cabeça e nos braços a sensação de ter passado todo esse tempo lidando com algo muito maior do que eu. Lembro especialmente de um momento, ao final dos nossos primeiros três anos de existência, quando os jornalistas mais experientes entre os que haviam criado a Ponte já haviam largado mão disso aqui e eu me vi tendo de assumir papéis de editor e de chefe de equipe, simplesmente porque não havia outra pessoa, naquele momento, que pudesse fazer isso. Eu era a pior escolha possível para essa posição: tinha sido repórter toda a minha vida, nunca havia chefiado ninguém e nem tenho o temperamento mais adequado para uma posição tão delicada. Uma missão muito maior do que eu. Mas que eu tive de agarrar e dar um jeito de me fazer do tamanho dela. Fiz muita bobagem ao longo de todo esse tempo e tenho certeza de que errei mais do que acertei. Mas, se você está me lendo agora escrevendo sobre os dez primeiros anos da Ponte, é porque alguma coisa de certo eu devo ter feito, ou pelo menos não tão errado a ponto de estragar tudo.

Por isso, acho que uma característica que tem feito a Ponte durar é sua natureza de projeto coletivo. Todos os que passam por aqui sabem — ou, se não sabem, aprendem na marra — que a Ponte é muito maior do que qualquer um de nós. Ela nasce como resposta a um anseio coletivo de milhões de brasileiros, o de que suas vidas sejam integralmente respeitadas pelo Estado que sustentam. E a Ponte se constrói coletivamente, com jornalistas caminhando lado a lado com os movimentos sociais e as demais vozes das quebradas. E nosso público participa da construção tanto quanto a gente, porque seguidor da Ponte nunca é só um leitor, é também alguém que está o tempo todo sugerindo, cobrando, reclamando, financiando, existindo com a gente. 

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O senso de missão coletiva, de fazer parte de algo maior do que a gente mesmo, é tão forte por aqui que explica como a gente pode ter renovado quase toda a equipe desde a fundação, tanta gente ter entrado e saído, e ainda assim a Ponte ter permanecido a mesma — e os que estão carregando hoje o piano por aqui continuam com a mesma paixão por essa missão quanto os que participaram da sua criação, em 2014.

Isso também explica porque conseguimos dar conta de tarefas tão maiores do que qualquer um de nós. É porque nunca estivemos sozinhos. Dentro da imensa fogueira de vaidades que é o jornalismo, e numa época em que a dinâmica das redes sociais incentiva a fragmentação e incentiva as performances egóicas de indivíduos influentes, faz enorme diferença participar da construção de um projeto que se fortalece na construção coletiva, sabendo que todos juntos somos fortes, somos flecha e somos barco, somos nós mesmo barco — mesmo que haja muito para temer, ao nosso lado estão muitos amigos e amigas que é preciso proteger.

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Por isso, a você, que ao longo desse tempo esteve comigo, com a gente, com todos nós, muito obrigado. 

E convido você a participar das nossas celebrações. Estamos apenas começando. Ainda vai ter muita coisa. Festa, documentário, festival. Celebração num momento desses?, alguém pode perguntar. E eu digo: sim. Justamente porque os tempos estão difíceis, é que precisamos celebrar o que de bom a gente tem.

*Fausto Salvadori e fundador e diretor de redação da Ponte Jornalismo

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