Voto da bancada evangélica contra saídas temporárias reflete medo das igrejas em disputar protagonismo com outras organizações também preocupadas com quem deixa temporariamente a prisão
A votação ocorrida nesta terça-feira (28/5) no Congresso Nacional para derrubar o veto do presidente Lula à lei da saída temporária teve uma expressiva diferença: 126 votos pela manutenção o veto contra 314 pela sua derrubada. Além do resultado já esperado, há um ponto, aparentemente contraditório, que merece ser destacado. Se as igrejas evangélicas, notadamente as de denominações neopentecostais, são tão atuantes dentro do sistema prisional, oferecendo assistência material religiosa, porque os deputados da bancada evangélica votaram contra a “saidinha”?
Para responder a essa pergunta, é preciso contextualizar qual a relação das igrejas evangélicas com o sistema prisional. Primeiramente, é necessário destacar que as resoluções sobre funcionamento da saída temporária e também das atividades que ocorrem nos presídios cabem à administração penitenciária de cada estado. A realidade a qual irei me referir nesse artigo diz respeito a São Paulo, estado em que atuo como militante anti carcerária, junto ao Coletivo Por Nós, e onde se situa minha pesquisa.
Isto posto, é preciso remontar ao início das ações da Igreja Católica no sistema prisional, que data do começo dos anos 1960, em penitenciárias femininas. Na década de 1970, reuniões litúrgicas e visitas aos presos e familiares passaram a acontecer e somente no final dos anos 1980 se estabelece a Pastoral Carcerária. A partir de então, a Pastoral passou a ser presente nos presídios, e um importante vaso comunicante, nas palavras do pesquisador Rafael Godoi, entre a “tranca” e o “mundão”. Para além de atividades de evangelização – não nos esqueçamos que se trata de um serviço da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – a Pastoral Carcerária assumiu um papel humanitarista, de denunciar violações, além de ser uma porta de entrada para pesquisadores e ativistas acessarem as prisões.
No entanto, nos últimos anos, a presença de igrejas evangélicas tornou-se cada vez maior, tanto com a realização de cultos nos presídios, quanto com atividades como cursos profissionalizantes, corte de cabelo e manicure. A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, conta com uma divisão chamada “Universal nos Presídios” , que além de promover ações dentro dos muros, atende aos familiares e oferece acolhimento no dia da “saidinha”.
Ao mesmo tempo que a presença das igrejas evangélicas avançava, atividades culturais, como saraus e rodas de leitura, foram ficando mais restritas nos presídios paulistas, posto que é o diretor da unidade que decide o que poderá ocorrer ou não, e a própria Pastoral Carcerária passou a encontrar alguns obstáculos. A circulação dos agentes está cada vez mais restrita dentro das prisões, concentrando-se principalmente nos pátios, sob o olhar dos policiais penais. As ameaças de suspensão de carteirinha dos agentes, inclusive dos padres responsáveis, é constante.
Se por um lado, houve uma movimentação dentro dos presídios que garantiu o crescimento das ações, principalmente da Igreja Universal , a porta da cadeia não tem dono. E é aqui que a aparente contradição entre a evangelização nos presídios promovida pelas neopentecostais e o voto da bancada evangélica pode se desfazer. No dia da saidinha, disputando espaço com a igreja evangélica, concentram-se nos portões familiares, organizações como a Amparar, formada também por familiares, ou a Por Nós, de mulheres sobreviventes do cárcere, além de organizações de advogados voluntários e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ou seja, o protagonismo evangélico garantido dentro das prisões é ameaçado em dia de saindinha.
A presença, nesse momento, de ativistas abolicionistas e organizações que denunciam as violações que ocorrem no sistema prisional, articulam redes que, além de conversarem com pessoas que estão em situação de cárcere, recolhendo denúncias e orientando as famílias sobre o processo, escapam dos tentáculos da igreja evangélica, e demonstram que que a conversão religiosa não é a única forma de sobreviver pós cárcere .
O crescimento do número de associações que não tem filiação religiosa, mas atuam junto aos familiares, sobreviventes do cárcere e pessoas encarceradas, e que são formadas, inclusive, por sobreviventes do cárcere, aponta caminhos possíveis de apoio, acolhimento e afeto que não passam pela religião, o que pode ser uma ameaça para a primazia que as igrejas evangélicas conquistaram no sistema prisional. Para a bancada evangélica, “bandido bom é bandido convertido”, e o fim das saidinhas parece garantir que, cada vez mais, a única ligação da cadeia com o “mundão”, e portanto, a única maneira de existir quando a “lili cantar” seja a mediada pelo pastor.
*Flavia Saiani é mestranda no Programa em Pós-Graduação em Sociaologia (PPGS)da Universidade de São Paulo (USP) e militante do Coletivo Por Nós