Artigo | A proibição de celular e a realidade da escola pública

    Concebida para estudantes de escolas particulares de classe média, política de banir celulares desconsidera realidade do ensino público — em que gestão Tarcísio digitalizou aulas e aparelho virou única defesa contra a violência policial

    Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

    Em 13 de janeiro deste ano, o presidente Lula sancionou a lei 15.100/2025 que regulamenta o uso de aparelhos celulares nas escolas, restringindo seu uso apenas para fins pedagógicos. A proibição atende à reivindicação de alguns grupos de pais de alunos de escolas particulares de classe média e profissionais, como por exemplo o “Movimento Desconecta” e conta com o apoio de parlamentares como a deputada estadual Marina Helou (Rede Sustentabilidade).

    De fato, os estudos sobre o impacto das telas na aprendizagem e na socialização de crianças e adolescentes são bastante robustos, no entanto, a forma que a proibição chega nas escolas públicas, e o cenário que exponho aqui é o de São Paulo, trazem alguns pontos que carecem de debate.

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    A deputada Marina Helou tem em sua página no Instagram o link para um “Guia de Uso de Celular nas Escolas”,  cuja uma das indicações é que a escola tenha armários para guardar o celular, já que, segundo o guia “na mochila não resolve, mesmo desligado, ele distrai quando está por perto”.

    O primeiro questionamento que trago é, como parlamentar, a deputada deve conhecer bem a realidade das escolas estaduais: problemas estruturais graves, escolas alagadas quando chove, zero conforto térmico, o que coloca a aquisição de armários como algo muito distante da realidade, já que existem outras prioridades para as escolas.

    Gestão Tarcísio/Feder baniu livros físicos

    O segundo ponto é quanto ao uso de telas e a política educacional da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário Renato Feder. As aulas na rede estadual de São Paulo são baseadas em slides produzidos pela Secretaria da Educação e exibidos, em geral, em uma televisão nas salas de aulas. Os componentes curriculares têm plataformas específicas para que os alunos cumpram as tarefas, inclusive de casa, e até mesmo um clube de leitura que conta com materiais virtuais. Os alunos praticamente não usam mais cadernos e livros físicos. Desdobro essa questão em duas frentes.

    Primeiramente, no que diz respeito ao acesso a equipamentos tecnológicos nas unidades escolares. A maioria das escolas conta com poucas máquinas, numa proporção quase que risível, como, por exemplo, 500 estudantes para 80 máquinas. A cobrança para o uso das plataformas é pesada, há uma classificação para a produtividade nas plataformas, nas cores vermelho, amarelo e verde, na qual o desejável é que a escola esteja pelo menos na amarela.

    Por conta deste ranqueamento, que acaba por definir os índices da escola, muitas vezes, o aluno é tirado da aula para ser colocado em frente a uma tela e cumprir as tarefas. Antes da proibição dos celulares, eles acessavam os próprios aparelhos. Agora, as escolas precisam encontrar maneiras de colocar as plataformas em dia, mesmo sem o número suficiente de máquinas.

    Por outro lado, este uso que o governo estadual de São Paulo faz da tecnologia faz parecer que o único problema são as redes sociais, afinal, quase que a totalidade do que os alunos fazem é com a mediação de telas. Segundo a professora doutora Lívia Crespi, docente no Curso de Licenciatura em Pedagogia e no Mestrado em Educação Básica do IFRS, Campus Farroupilha, o problema do uso de aparelhos tecnológicos vai muito além das redes sociais. Segundo ela,  o cérebro se dispersa mais facilmente diante de uma tela, já que esta não exige o mesmo grau de concentração e nem a mesma mobilização de habilidades que a leitura e a escrita no papel.

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    A especialista complementa que a tela não é somente um meio de acesso à internet, é um meio de comunicação. No entanto, diferente da escrita manual, é extremamente passiva, não exigindo nem destreza manual, nem habilidades cognitivas que o cérebro desenvolveria utilizando a coordenação motora fina. É preciso frisar que em escolas voltadas para a elite econômica, há uma preocupação em “construir”, literalmente, o conhecimento, baseando-se em experiências de locais onde o desempenho educacional é mais alto, como os países nórdicos. Além de oficinas, onde o processo é mais importante que o produto final, o livro didático não é substituído pela tecnologia.

    Desta forma, questiono se realmente há uma preocupação real com os danos que o uso excessivo de celular e computador podem causar, considerando que os alunos da rede pública estadual estão mergulhados nesta realidade por conta das próprias diretrizes impostas pela secretaria da educação, já que o ensino adotado pela rede vai na contramão do que vem sendo apresentado como caminho para uma educação de qualidade.

    O celular como instrumento de defesa

    Por fim, estamos assistindo a uma crescente presença de agentes de segurança nas escolas públicas, principalmente na periferia, sob a justificativa de esses locais serem mais “vulneráveis” e, nesta situação, sabemos que a solução sempre vem em forma de forças policiais. Embora não seja o assunto deste artigo, cabe frisar que agentes de segurança não têm formação para trabalhar em unidades escolares e nos falta uma explicação sobre qual trabalho pedagógico seria desenvolvido por eles para auxiliarem no cotidiano escolar.

    Sob o comando de Tarcísio e Derrite, a PM  foi responsável , entre 2022 e 2024, pela morte violenta de 1 a cada 3 crianças e adolescentes. O celular é o meio que se têm de defesa e denúncia em relação às autoridades policiais que cometem crimes contra a população. Com os celulares proibidos, qualquer violação ou excesso contra os estudantes das escolas ocupadas pelos agentes de segurança, não poderá ser provado. E obviamente, essa perspectiva é completamente ignorada por aqueles que propuseram a proibição e pelos legisladores, que como quase todos os formuladores de políticas para educação, nunca pisaram no chão da escola pública.

    Flavia Saiani, professora da rede pública, é militante abolicionista no Coletivo Por Nós e mestranda no Programa em Pós-Graduação em Sociaologia da Universidade de São Paulo (PPGS-USP). As opiniões expressas nesta seção são de responsabilidade dos autores, não refletindo necessariamente a opinião da Ponte.

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