Artigo | A sobrinha do tio Paulo não tem um Porsche

A disparidade no tratamento entre Érika e figuras como o “Playboy do Porsche” ilustra uma falha sistêmica que privilegia alguns em detrimento de outros, baseando-se no CEP e na cor dos envolvidos

À esq., Porsche batido de Fernando Sastre de Andrade Filho, à dir., Érika com Paulo, já morto, em agência bancária | Fotos: Polícia Civil de SP / Reprodução

É fato que o caso da Érika e seu tio Paulo foi um acontecimento esdrúxulo. A imagem de um cadáver em uma cadeira de rodas, diante de uma atendente de banco é, sem dúvidas, algo perturbador, e tão perturbador quanto a imagem de um homem morto em um banco é deparar-se com o mal gerado quando há uma situação de prejulgamento, por mais absurdo que seja o caso. A história que se desenrola expõe a maneira como o nosso sistema de justiça criminal pode ser célere quando a intenção é violar o direito à presunção de inocência de alguém. 

Érika é vista pelas autoridades – delegado, promotor e juíza – como culpada, antes mesmo da análise de qualquer prova apresentada por sua defesa. Essa predisposição ignora evidências significativas, as quais contrapõem a narrativa de sua culpa. Algumas delas são:

  • Paulo havia solicitado o empréstimo no mês anterior ao de sua morte, e só foi pegar a quantia disponibilizada pelo banco na última semana, pois foi internado nesse meio tempo.
  • O empréstimo foi feito para pagar uma obra cuja finalidade era adaptar a casa em que Paulo vivia, uma vez que ele estava com dificuldade de mobilidade. Ressalta-se, ainda, que existe o orçamento para essa obra.
  • De acordo com relatos, o idoso estava dormindo na garagem, pois não conseguia subir as escadas de sua casa, o que expõe a necessidade de adaptação do espaço em que ele residia.
  • Érika tem sofrimento mental constatado por laudo psicológico e psiquiátrico. Ela é dependente de remédios controlados e que comprovadamente provocam alucinações. É realmente possível que ela estivesse em negação em ver o tio morto e acreditasse que ele estava vivo.

A prisão cautelar de Érika, diante desses fatos, parece desproporcional e injustificada, um reflexo de uma vontade de condenação antecipada por conta da pressão da opinião pública, mais do que de um desejo de chegar à verdade dos fatos. Este cenário é agravado pela comparação com outros casos de repercussão pública, onde indivíduos em circunstâncias semelhantes ou até mais graves, como Fernando Sastre de Andrade Filho, empresário envolvido no homicídio de um motorista de aplicativo enquanto dirigia o seu Porsche, usufruem de liberdade ao aguardarem julgamento.

A disparidade no tratamento entre Érika e figuras como o “Playboy do Porsche” ilustra uma falha sistêmica que privilegia alguns em detrimento de outros, baseando-se no CEP e na cor dos envolvidos. O artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, estabelece a presunção de inocência até que se prove o contrário, um princípio que nitidamente foi ignorado no caso de Érika.

Essa violação não se restringe apenas à dimensão legal; ela afeta profundamente a dignidade e a humanidade da acusada, linchada pela opinião pública e submetida a um tratamento bastante hostil enquanto detida. Além disso, a prisão temporária no Brasil deve atender a certos requisitos previstos na legislação. Essa medida só pode ser adotada quando houver indícios de autoria ou participação em infrações penais graves, quando houver fundadas razões para acreditar que o suspeito obstruirá a investigação ou fugir, ou quando for necessário para a proteção da vítima ou da testemunha. No caso de Érika, tais requisitos não parecem ter sido minimamente considerados.

Érika é uma mulher negra e moradora de Bangu, um bairro periférico da cidade do Rio de Janeiro, e a discrepância no tratamento que ela e o empresário Fernando Sastre de Andrade Filho, homem branco e morador de um bairro rico de São Paulo, demonstra o caráter racista e elitista do nosso judiciário. Os dois casos tiveram grande repercussão na mídia, mas só no caso dela a opinião pública conseguiu influenciar na prisão. Nos dois casos também houve pedidos de prisão por parte dos delegados, no dela o pedido foi prontamente atendido pelo judiciário e no caso dele, além de não atendido, o delegado ainda foi tirado das investigações.

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Enquanto Erika é hostilizada no presídio, e contrariando as evidências e requisitos que possibilitariam uma prisão cautelar, o homicida (em julgamento) dono do Porsche responde em liberdade com aval da “justiça” e pode ver livremente os memes zombando de Erika e seu tio em suas redes sociais.

*Rodrigo Mondego é advogado dos Direitos Humanos, mestre em políticas públicas e membro da Comissão Popular de Direitos Humanos do Rio de Janeiro.

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