Número de militares e policiais na política aumentou de 18 para 73, mas maioria é de alto escalão e representatividade acaba deixada de lado
Muito além da vitória de Jair Bolsonaro (PSL), as eleições de 2018 foram marcadas pelo enorme avanço de um grupo político do qual o atual presidente sempre fora representante: a Bancada da Bala teve um crescimento expressivo e ganhou um peso inédito nas casas legislativas do país. Para se ter uma ideia, um estudo que levou em conta apenas a autodeclaração dos eleitos mostrou que o número de militares e policiais saltou de 18 para 73 nas Assembleias Legislativas estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado.
O número da Bancada é ainda maior se contabilizarmos outros que não declararam a profissão e os membros da sociedade civil que se elegeram endossando o discurso “linha dura” para a segurança pública.
É notório que este grupo político apostou suas fichas na chamada “política do medo”, prometendo respostas cada vez mais enérgicas e violentas contra o crônico problema da insegurança e da criminalidade no país. Não faltam estudos, doutrinas e fatos que mostrem o quanto este tipo de resposta política, apesar de sedutora, é ineficiente e acaba por ter o efeito reverso de aumentar ainda mais a violência na sociedade. Porém, não é este o foco deste texto.
Isso porque a Bancada da Bala não se elege apenas prometendo soluções violentas para a segurança pública. Boa parte de sua plataforma eleitoral também é voltada aos profissionais dessa área, prometendo-se uma defesa intransigente dos direitos dos policiais. Ao analisar a atuação dos “políticos da bala”, porém, é de se questionar se os “nobres” legisladores e gestores realmente atuam na defesa de todos os trabalhadores da segurança pública.
Para entender este fenômeno, porém, é preciso compreender, primeiro, como funcionam as estruturas policiais brasileiras. E não demora muito para se notar que estas são verdadeiras “sociedades de casta”. Isso porque, no Brasil, as polícias possuem uma divisão interna de carreiras fortemente demarcada, sendo que o acesso aos postos mais altos é vedado aos que começam por baixo.
Na Polícia Militar, por exemplo, há a divisão entre Oficiais e Praças, sendo que os postos do oficialato são reservados àqueles que tenham entrado pela “porta lateral” das instituições, através das Academias de Oficiais. Ou seja, são policiais que não precisaram passar pelos postos mais baixos da corporação antes de assumir posições de comando. É certo que, hoje, já existem brechas para que alguns poucos Praças consigam chegar a posições mais baixas do oficialato, mas em um número bem limitado e com cumprimento limitado de funções.
Na Polícia Civil, a divisão de castas é ainda mais forte, sendo que os que ocupam as posições mais baixas (investigadores, agentes, peritos, etc) somente poderiam atingir a posição superior de delegado através de concurso externo, como qualquer outro membro da sociedade civil.
Em uma estrutura altamente hierarquizada e regida por códigos disciplinares duros que preveem punições extremamente arbitrárias a qualquer coisa que possa ser considerada insubordinação, essa divisão de castas nas polícias se transformou num verdadeiro mecanismo de controle dos policiais de baixas patentes pelos que ocupam as posições mais altas. E essa lógica acabou por se estender à luta política da Bancada da Bala.
Se levarmos em conta apenas os oriundos de carreiras militares eleitos em 2018, vemos que 40 ocupavam postos de Oficial, enquanto 31 eram Praças. Some-se a isso, ainda, o impressionante número de 34 delegados (federais e estaduais) eleitos nas Casas Legislativas do país. Na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), onde a Bancada da Bala teve o resultado mais expressivo, apenas 2 dos 13 representantes das forças policiais pertencem à base das instituições, sendo que os demais ocupam postos mais altos. Os números impressionam se considerarmos que, proporcionalmente, as posições mais baixas das polícias são infinitamente mais numerosas do que o alto escalão.
Com uma composição dessas, não é surpresa que as pautas da Bancada da Bala reproduzam, quase sempre, a mesma lógica hierárquica de militares e das polícias, privilegiando as demandas do alto escalão e, por vezes, até reprimindo as propostas defendidas pelos trabalhadores da base da segurança pública e das Forças Armadas.
Um caso simbólico desse problema tem se desenrolado nas últimas semanas. O PL 1645/2019 é uma proposta que irá aumentar ainda mais o abismo salarial entre Praças e Oficiais das Forças Armadas. Curiosamente, o PL, que chega a dar aumentos de mais de 50% a Generais enquanto concede aumentos de menos de 5% a Sargentos, é de autoria do próprio presidente Jair Bolsonaro e, por isso mesmo, vem sendo chamado de “PL da Traição”. Para escancarar ainda mais as contradições da Bancada da Bala, nesse caso, foi o PSOL, partido socialista de esquerda, que agiu em defesa dos direitos dos Praças, evitando que o PL fosse enviado diretamente ao Senado.
Mas as contradições não param por aí. Na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), outra Casa marcada pela presença da Bancada da Bala, ainda em 2016, o então deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) apresentou um PL (Projeto de Lei) para testes de segurança em armas usadas por policiais, uma vez que não são raros os problemas apresentados que colocam em risco a vida desses trabalhadores. Aprovado, o PL acabou vetado pelo governador Wilson Witzel (PSC-RJ), outro ex-militar, neste ano. Na discussão pela derrubada do veto, foi justamente o PSL de Bolsonaro e seus representantes da Bala que articularam para que o veto fosse mantido e o PL arquivado.
Em São Paulo, também neste ano, outra polêmica envolvendo um candidato que surfou no discurso da Bancada da Bala. O Governador João Doria (PSDB-SP) fora eleito com promessas de valorização da carreira policial. Na primeira oportunidade que teve de cumprir a promessa, porém, vetou o PL 232/2018, do ex-deputado estadual Raul Marcelo (PSOL), que garantia assistência, auxílio e atendimento psicológico, médico e terapêutico a policiais vítimas de violência. Dias depois, lançou um programa de valorização policial que consiste, basicamente, em distribuir certificados e prêmios (como cafeteiras) a policiais que se destacaram em suas atividades.
Mas essas contradições não vêm de hoje. Historicamente, pautas de extremo interesse das bases policiais e militares são sistematicamente ignoradas pela Bancada da Bala. Questões como a desmilitarização das polícias (defendida por mais de 77% dos policiais, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública), a instituição das carreiras únicas e o direito de fazer greves e manifestações nem chegam a passar pela agenda da Bancada da Bala, que parece mais preocupada em manter privilégios dos altos escalões policiais enquanto a “máquina de guerra urbana” que coloca a vida das bases em risco diariamente segue funcionando.
Assim, percebe-se que os direitos políticos dos trabalhadores da segurança pública são, de fato, mitigados apenas para aqueles que ocupam as posições mais subalternas dessas instituições, enquanto, do outro lado, o alto escalão goza inclusive de bancada própria para seguir fazendo um verdadeiro lobby em defesa de seus interesses nas esferas de poder do país. Definitivamente, a ampliação dos direitos dos trabalhadores das bases da segurança pública e das Forças Armadas não está na ordem do dia da Bancada da Bala.
*Almir Felitte, Advogado-membro do Policiais Antifascismo
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