Em artigo, historiador aborda questões da repressão da ditadura a negros e pobres que a Comissão Nacional da Verdade não investigou
“Para quando ficou o acerto de contas com a verdade das vítimas dos Esquadrões da Morte?”
Essa pergunta foi feita por Débora Maria da Silva e Danilo Dara, do Movimento Independente Mães de Maio, no livro “Bala Perdida” (editora Boitempo, 2015). O questionamento era voltado para as comissões da verdade criadas para investigar as graves violações de Direitos Humanos cometidas pela ditadura, cujos resultados, na visão das Mães de Maio, reproduziam uma lógica silenciadora da violência de Estado contra negros, pobres e moradores de favelas e periferias.
Em seu relatório final, a CNV (Comissão Nacional da Verdade) afirmou que a ditadura teria deixado 434 vítimas. A cada uma delas foi dedicado, no terceiro volume do relatório, um espaço para sua biografia, sua história de militância e as circunstâncias de sua morte ou desaparecimento.
Nesse quadro, de fato, não houve espaço para os mortos e desaparecidos nas mãos dos Esquadrões da Morte, bem como tantos outros indivíduos pertencentes a setores da sociedade invisibilizados da história oficial.
A CNV chegou a dedicar partes de seu relatório para alguns desses grupos sociais, como os indígenas e pessoas LGBT. Mas para eles restou um espaço no segundo volume do documento, com textos assinados individualmente por membros específicos do colegiado. Assim, conformou-se uma estranha situação em que, no mesmo relatório, é possível ler que a ditadura deixou 434 vítimas, mas que o regime foi responsável pela morte de mais de oito mil indígenas.
Seria possível argumentar que a realização desse tipo de investigação é mais complexa. Mas a comissão não se propôs a dar conta dessas questões, apesar da luta interna travada por alguns assessores e membros, e pela pressão externa. Pelo contrário: recebeu documentos e testemunhos que permitiriam abrir investigações mais amplas sobre violações cometidas contra os setores historicamente alvos prioritários da violência estatal, mas optou por não utilizá-los.
É o que mostram dois documentos localizados no acervo da Comissão Nacional da Verdade, hoje parcialmente disponível para consulta no Arquivo Nacional.
O primeiro é um relatório produzido pela Stasi (polícia política da Alemanha oriental) e analisado pela CNV em setembro de 2014. O texto é um relato sobre as atividades de Sérgio Paranhos Fleury, mais notório nome do Esquadrão da Morte que atuou nas periferias de São Paulo nas décadas de 1960 e 1970. No documento, há indícios de que o Brasil possivelmente exportou o modelo do Esquadrão da Morte para outros países no Cone Sul. Em determinada passagem, pode-se ler:
“Em fevereiro de 1970, Fleury foi ao Chile para compartilhar sua experiência com a polícia local. Pouco depois, surgiu em Santiago a organização terrorista “Grajo”, criada a partir do exemplo brasileiro. Ao mesmo tempo, surgiram Esquadrões da Morte na Colômbia e na Argentina”.
Como se vê, Fleury pode ter ido ao país vizinho divulgar e ensinar sua experiência como comandante de uma força repressiva que não se voltava contra a oposição política, mas fundamentalmente contra setores marginalizados e empobrecidos da população.
Em função de sua experiência como torturador e assassino, Fleury foi convocado para compor os quadros da repressão política, tendo comandado a operação em que foi assassinado o inimigo número um da ditadura, Carlos Marighella.
Mas esse aspecto dos Esquadrões da Morte é amplamente conhecido. O que a historiografia e os órgãos da chamada “justiça de transição” jamais fizeram foi se dedicar a recuperar a história dos milhares de indivíduos que, assassinados por esses esquadrões, padecem hoje em uma vala comum do esquecimento coletivo. A CNV manteve essa lógica, ignorando o relatório da Stasi e não buscando se aprofundar nessa investigação.
O segundo documento é intitulado “Resultado de levantamento de dados sobre a temática ‘a repressão aos negros durante a ditadura“, elaborado por pesquisadoras da Comissão Nacional da Verdade”.
Trata-se de um texto de treze páginas em caráter preliminar, mas que revela um importante e dedicado esforço de pesquisa e sistematização de resultados por parte de pesquisadoras da comissão. A análise é centrada em arquivos do SNI (Serviço Nacional de Informações) e do CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), localizados no Arquivo Nacional e que versam sobre a perseguição aos movimentos e associações culturais antirracistas que se fortaleciam ao longo da década de 1970.
Certamente, o aprofundamento daquelas pesquisas poderia resultar em um capítulo denso e aprofundado para o Relatório Final da CNV sobre o racismo institucional no período. Mas esse aprofundamento também não foi realizado e a única citação à temática foi feita no texto “A resistência da sociedade civil às graves violações de Direitos Humanos“, também do segundo volume do relatório, com apenas um parágrafo mencionando o surgimento do MNU (Movimento Negro Unificado) na Bahia, em 1978.
Nesse momento, quando a violência do passado e do presente se entrelaçam, é ainda mais importante apontar os limites dos recentes movimentos por verdade, memória, justiça e reparação para os crimes da ditadura. Somente assim será possível avançar na luta contra a permanência de um Estado que continua torturando, matando e desaparecendo.
(*) Lucas Pedretti Lima é historiador e assessor da Coordenadoria Estadual por Memória, Verdade e Justiça do Rio
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