Implantadas por iniciativa das próprias polícias, câmeras corporais caíram em desgraça porque passaram a ser vistas como ferramenta para controlar uma corporação que quer vigiar a todos e não ser vigiada por ninguém
Do jeito que diversos policiais e seus apoiadores na extrema-direita passaram a se referir às câmeras nas fardas, parece que as bodycams viraram coisa de comunista, como as praias grátis, a Constituição e as vacinas. Por isso a reportagem da Ponte sobre o fim do programa de câmeras corporais de Santa Catarina, publicada na semana passada, pode surpreender muita gente. É que nela a repórter Jeniffer Mendonça lembra que a ideia de implantar filmadoras em gambés não veio da mente de algum professor universitário maligno vestido com camiseta de Che Guevara, mas foi uma iniciativa das próprias forças policiais.
Em 2018, quando o Tribunal de Justiça de Santa Catarina disse que havia uma grana disponível que a Polícia Militar poderia utilizar, os policiais catarinenses resolveram investir a verba extra comprando bodycams. Foi o primeiro estado a adotar o sistema em sua polícia, mas outros já estavam de olho na ideia. A PM paulista, por exemplo, já havia implantado um projeto-piloto de teste de câmeras em fardas em 2017.
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Nada disso deveria ser surpresa. As polícias valorizam a disciplina e o controle sobre seus homens, especialmente as militares, que cultivam o dogma de que os praças (cabos, soldados e sargentos) precisam ser vigiados constantemente pelos oficiais por pertencerem à mesma classe social e terem a mesma cor da pele dos grupos que devem reprimir. As câmeras, assim, teriam tudo para se tornar mais um instrumento útil dessa autovigilância. Além de eventualmente ajudarem a reunir provas contra as pessoas negras e pobres que as PMs costumam prender.
Por isso, chega a ser engraçado constatar o salto duplo twist carpado dado pela questão das câmeras no imaginário policial ao longo dos últimos anos. Em pouco tempo, o uso das bodycams passou a ser tão atacado por policiais, parlamentares das bancadas da bala e outros políticos da extrema-direita que agora começa a ser deixado de lado ou bastante modificado.
Governada pelo bolsonarista Jorginho Mello (PL), Santa Catarina anunciou nesta semana que vai acabar com as câmeras nas fardas. Em São Paulo, o também bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) vai pelo mesmo caminho: atacou em diversas vezes o instrumento, dizendo não querer “um policial vigiado”, e aparentemente trabalha para adotar um sistema em que os policiais poderão desligar suas câmeras quando quiserem.
O que aconteceu? Por que uma ferramenta que os próprios policiais haviam escolhido adotar virou, em pouco tempo, sinônimo de intromissão e desrespeito? Sobre isso, a reportagem da Jeniffer traz a declaração de um PM anônimo que é preciosa para entender o que se passou nessas cabeças embaixo das boinas: “A esquerda e ONGs têm papel fundamental nesse triste desfecho, quando focaram somente na letalidade policial, deixando de lado outros aspectos relevantes, como a produção de provas”.
Em tempo: para entender o que um policial militar chama de “esquerda”, é preciso levar em conta que estamos falando de uma corporação que até hoje guarda orgulho das atrocidades da ditadura militar e na qual a maioria dos seus membros apoia o bolsonarismo e odeia ouvir falar em pautas LGBTQIAPN+ — como apontou uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Então, é provável que para um PM a expressão “esquerda” sirva para definir simplesmente todo mundo que duvide da existência de uma conspiração do Foro de São Paulo com o PT para introduzir mamadeiras de piroca na educação infantil.
O que as polícias não previram — e não gostaram quando aconteceu — é que, com a implantação das câmeras corporais, a sociedade civil e mesmo alguns governos passaram a ver nelas uma ferramenta útil para conter a violência policial. Em São Paulo, já havia algo dessa ideia quando o tucano João Doria (seria ele da “esquerda” ou das “ONGs”?) deu sinal verde para a PM paulista adotar o sistema: era uma época em que o governador tucano buscava tirar o pé da letalidade estatal, após a repercussão ruim do massacre de nove jovens numa ação policial no bairro de Paraisópolis. O fato é que, especialmente em São Paulo, as câmeras se mostraram bastante eficazes para reduzir tanto a quantidade de policiais que matavam como a dos que morriam.
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Em vez de comemorar, porém, a polícia e seus apoiadores reagiram, passando a atacar as câmeras como se pudessem se tornar uma forma de a sociedade civil controlar o seu trabalho. E tudo que policiais e militares no Brasil não querem é terem de se submeter ao poder civil e às regras democráticas. A briga com as câmeras, aliás, faz parte de um movimento mais amplo em que os policiais aproveitaram a ascensão ao poder da extrema-direita para tentar afrouxar ainda mais os poucos controles que ainda têm sobre si, como quando buscaram, por exemplo, com o pacote anticrime do então ministro Sergio Moro, ampliar as situações em que poderiam matar com impunidade garantida. Isso eles não conseguiram, mas o tal pacote criou uma série de entraves para a investigação das mortes cometidas por policiais que continuam até hoje.
O que leva a gente a notar, com pouca surpresa, que as forças policiais e os governos que rejeitaram a filmagem das ações policiais são as que estão fortalecendo mais e mais os sistemas que permitem às forças policiais filmar todo o restante da população que não veste fardas, como Tarcísio de Freitas faz em São Paulo com o Muralha Paulista. Enfim, estão conseguindo o que queriam: um Estado que vigia a todos, mas que não pode ser vigiado por ninguém. Isso tem um nome: Estado policial.
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