Eu tinha um filho lindo, forte e feliz, chamado Marco Aurélio, que ia se formar médico e a Polícia Militar do Estado de São Paulo assassinou covardemente no dia 20 de novembro de 2024

Quão difícil é fazer uma carta de socorro de ajuda para rostos que não conhecemos, porém ciente de que todas temos em comum o amor que nos une a nossos filhos, aquele amor que se forma com os primeiros movimentos desse pequeno ser em nosso útero, que se reforça com a dor física de parir e o medo instintivo de não saber cuidá-los — e não importa de que cor seja nossa pele, a classe social, a juventude ou mais anos já carregados nesta vida —, o sentimento é universal.
Mãe, deixa me contar-te minha tristeza, aquela que me desgarra a alma, que me faz vir até você a contar-te sem pudores minha dor, neste segundo domingo de maio. É o primeiro ano sem meu caçula, aquele que me falava “mãe”, em tom alto e sonoro e cheio de carinho, que me mandava sem exageros dez ou mais mensagens de zaps, que se eu não contestava mandava um monte de mãe, mãe, mãe…
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Olha para o teu filho ou filha e imagina por um centésimo de segundo que ele ou ela se foi para sempre não importando o porquê, imagina que nunca mais vá olhar esse rosto, escutar sua voz e, por que não, dar uma bronca. Imagina não sentir seu cheiro, e as roupas que tinham o cheiro dele o tempo já levou, e ele só fica em tua memoria. A morte de um filho é a dor mais grande e inimaginável que existe.
Eu tinha um filho lindo, forte e feliz, que a Polícia Militar de São Paulo assassinou covardemente, no dia 20/11//2024, estando ele sem camiseta, desarmado na frente de uma grade sem poder correr e foi deixado quase morrer esperando um auxilio que demorou tanto, tanto tempo a chegar e o mais irônico na frente de um hospital no centro da Vila Mariana. A próxima vez que eu o vi foi em uma mesa cirúrgica sem vida. Cheia de lágrimas, caí de joelhos, tentei abrir os olhos dele, mais já não tinham vida; um véu cobria esses olhos lindos. Chorei e cantei aquela nossa música, aquela que os dois amávamos. Marco Aurélio era seu nome, tinha 22 anos e ia se formar de médico este ano.
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Imagina agora outras histórias parecidas de outras mães que sofrem aguardando uma justiça sem tempo, justiça que demora cinco, dez, até quinze anos neste nosso Brasil continental. Mães como Deuza, que luta pelo seu garoto Thiago; Beatriz, mãe da criança Ryan; Cristina, mãe de Denys Henrique; Sandra, mãe de Luiz Fernando; Arlene, mãe de João Vitor; Marcia, mãe de Renatinho; as mães de Alexandre Roberto, Jeferson, Jose Carlos, Igor, Vitoria, e outras mães e respectivos filhos inocentes arrancados delas.
Existem tantas histórias em São Paulo e no Brasil todo que é impossível listar nesta carta.
E te perguntarás “o que eu posso fazer frente a essa realidade tão distante de mim?”, eu também pensava assim, eu pensava que sendo profissional médica morando na Vila Mariana, bairro nobre de São Paulo, estaria segura. Nunca imaginei que a maldade que estava presa na Caixa de Pandora iria me atingir. Porém, aqui estou chorando sem meu filho na cercania deste 11 de maio, Dia Internacional das Mães.
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Venho pedir a você e a todas as mães que unamos nossas vozes e cobremos os governantes, magistrados, forças policiais e políticos para fazer seu trabalho de cuidar das pessoas e punir quem merece, quem faz do ato de matar um ato banal. Temos que proteger a sociedade sim, porém isso não justifica o despreparo de alguns policiais que matam futilmente e seus atos irresponsáveis ficam impunes, deixando em nós, mães, a sensação de perda e humilhação como se nossos filhos fossem descartáveis e não tivessem valor social. Unamos nossa vozes.
Peçamos também, com urgência, um decreto para criação e execução de ações de socorro e acolhimento das famílias cujas lágrimas são intermináveis e sua angústia pela nossa justiça sem fim é destrutiva, para aliviar seu sofrimento emocional, psicológico como consequência de crimes de Estado que violam os direitos estabelecidos na Constituição da República que, em seu artigo 5º, garante a inviolabilidade do direito à vida a todos os cidadãos, o direito de não ser morto como também a uma existência digna.
Acredito que a força de uma mãe, aquela leoa que existe em cada uma de nós, vai nos permitir unirmos e pedir aos acima mencionados que…
Parem de matar nossos filhos!
É a hora de mostrar todos a grandeza da nossa alma e o mérito de ter vivido, que será a única coisa que levaremos para a Eternidade.
Silvia Mónica Cárdenas Prado, médica Intensivista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)