No Dia de Apoio às Vítimas de Tortura, é preciso lembrar que, com uma população carcerária 170% acima da capacidade, vivemos um estado de violência permanente
Frases como “Intervenção militar. Fechem o Congresso e o STF” foram vistas aos montes em cartazes de manifestantes bolsonaristas na Esplanada do Ministérios, em Brasília, no dia 31 de maio. Uma semana depois, na avenida Paulista, em São Paulo, também houve um ato em defesa do governo, com pedido de “intervenção militar com Bolsonaro no poder” e a “criminalização do comunismo”.
No dia 19 de junho, o Brasil atingiu a marca de 1 milhão de casos confirmados de coronavírus e foi manchete em todos os principais noticiários do País.
As citações fornecem o tom do cenário experimentado atualmente no Brasil. Narrativas contra nossa frágil democracia, em meio a uma pandemia, marcam as nossas rotinas, gerando disputas políticas, instabilidade e medo.
Por outro lado, a data de 26 de junho nos remete a outra citação contrária a estes relatos recentes, que remontam ao período da ditadura militar no Brasil e aos ataques aos direitos fundamentais.
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“Ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, é o que diz o artigo 5º da Constituição Federal. No Dia Mundial de Apoio às Vítimas de Tortura, a Organização das Nações Unidas (ONU) reafirma a necessidade de os países adotarem medidas preventivas e combativas a uma prática que atinge, em especial, pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social, como as que estão privadas de liberdade e as que sofrem abordagens policiais nas ruas.
Em nosso país, o qual dispõe de mais de 750.000 presos e suas prisões exibem uma taxa de ocupação média de 170%, é possível falar de uma crise penal permanente. Este cenário se torna ainda mais agudo em face do Covid-19. A superlotação, a falta de materiais de higiene, o parco acesso a água e a baixa disponibilidade de serviços de saúde são alguns aspectos que afligem o cotidiano carcerário. No quadro atual, estes problemas tornam os indivíduos presos muito mais suscetíveis à infecção pelo novo coronavírus, em comparação às pessoas que vivem no “mundo livre”.
De fato, quase não são feitos testes para avaliar o nível de infecção nas pessoas presas, o que nos deixa bastante no escuro sobre a questão. Porém, a partir de informações colhidas entre os poucos indivíduos averiguados, levantadas entre março e maio de 2020, constatou-se que a mortalidade por Covid-19 entre os presos é cinco vezes maior em comparação à população em geral.
Correm na imprensa relatos sobre custodiados que estariam se despedindo de suas famílias, remetendo cartas de amor às companheiras e até filhos pedindo “socorro” para as mães, dadas as incertezas do que irá ocorrer com eles durante a pandemia.
Não seria nada exagerado apontar, então, que as pessoas presas já eram bastante vulneráveis a situações de tortura e maus tratos em uma situação regular. Agora, diante do novo coronavírus, tais práticas ganharam uma sistematicidade muito mais alta, causando intenso sofrimento. Se demandam o “retorno” de atos torturantes, alguns grupos perdem de vista que tais ações já são rotineiras, tratadas como algo quase trivial nos cárceres nacionais.
Como prevenir a tortura, então?
Nos últimos anos, o Brasil adotou duas importantes ações de enfrentamento à tortura: criou os Mecanismos Preventivos e estipulou as audiências de custódia.
Baseando-se em uma política desenhada pela ONU, a lei 12.847 de 2013 criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, conjugando, entre outros atores, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e os Mecanismos estaduais de Prevenção e Combate à Tortura (em funcionamento em algumas unidades da federação, como o Rio de Janeiro).
Dentro de sua área de competência, estes órgãos têm a prerrogativa de realizar visitas regulares a unidades de privação de liberdade, com objetivo de identificar situações de tortura. Ao final das visitas, redige-se um relatório em que são sistematizadas as violações encontradas, assim como são remetidas recomendações aos responsáveis pela privação de liberdade.
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A ação de órgãos como o Mecanismo Nacional é ainda mais fundamental em tempos de pandemia. Sob a justificativa de prevenir o novo coronavírus nas prisões, a primeira medida adotada pelos governos estaduais foi proibir as visitas familiares, a despeito de diretrizes emitidas por órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Indicou-se que as famílias seriam veículos de contaminação aos cárceres, ignorando-se que diariamente policiais penais, equipe técnica e outros canais mediam o “mundo livre” e o “mundo carcerário”.
Em verdade, sem o contato com seus parentes, as pessoas presas se tornam ainda mais alheias ao que se passa no ambiente doméstico e, além disso, deixam de receber materiais que, embora devessem ser entregues pelo Estado, são remetidos durante as visitas, como remédios, produtos de higiene, comida e roupas, itens que compõem o chamado “jumbo”. Observar o que se passa no interior das prisões durante a pandemia é garantir transparência e, sobretudo, prevenir situações torturantes.
No entanto, na gestão presidencial de Jair Bolsonaro, o Mecanismo Nacional sofreu uma série de ataques, dentre outros, a precarização da atuação de seus membros, que passou a ser definida pelo Decreto nº 9.831 de 2019.
Esta norma alterou a estrutura de cargos em comissão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (órgão ao qual o Mecanismo Nacional está administrativamente vinculado), tornando as atividades desenvolvidas pelos integrantes do ente voluntárias e não remuneradas. Uma decisão da justiça suspendeu o decreto, mas a experiência demonstrou as fragilidades de não se terem garantidos em lei determinados aspectos essenciais ao bom andamento da política, como a estruturação dos seus quadros.
Já o instituto das audiências de custódia define que as pessoas presas em flagrante devem ser apresentadas em juízo em até 24 horas após a detenção, a fim de ser indicado se ela aguardará a sentença a ser emitida pelo juiz em liberdade ou em prisão preventiva. Em especial, no momento da audiência, os operadores do direito devem se atentar se a pessoa foi vítima de violência policial durante o flagrante. Em caso positivo, devem ser encaminhadas ações de responsabilização contra quem cometeu a violação e de reparação à vítima.
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Entretanto, em face da pandemia, as audiências de custódia foram suspensas, impedindo que os juízes tenham contato com as pessoas presas, o que inviabiliza por completo a oportunidade de observar qualquer sinal de agressão e relatos sobre a prisão. Aventou-se a possibilidade de realizar tais audiências por videoconferência (o que está em votação pelo CNJ), mas gera fortes receios a possibilidade de tirarem proveito do cenário de Covid-19 para que este tipo de prática se torne comum no pós-pandemia. A hashtag “tortura não se vê pela TV” ganhou espaço nas mídias sociais nos últimos dias, em reforço a essa preocupação.
De fato, há uma série de casos de violência policial noticiada na imprensa nos últimos tempos, expondo que a falta de um dispositivo como o da audiência de custódia abre brechas para o cometimento de tortura nas atividades de segurança pública.
Seres humanos morrendo. E daí?
Ao invés de demonstrar desprezo, como feito pelo presidente em consequência das mortes geradas pela pandemia, essa pergunta deve nos incitar a monitorar a execução de políticas de prevenção à tortura, como o Mecanismo Nacional e as audiências de custódia, sobretudo, em momentos tão críticos como o atual. E dias emblemáticos, como o de Apoio às Vítimas de Tortura, possibilitam estimular essa tarefa, garantindo visibilidade a uma pauta discutida muito irresponsavelmente por alguns setores sociais, como os citados no início deste artigo.
Datas como a de hoje, 26 de junho, devem evitar que a tortura seja banalizada e justificada. Precisamos nos manter atentos e fortes para impedir que a pandemia seja usada para abrir as porteiras que potencializam a dor dos mais vulneráveis, como as pessoas presas. Ditadura nunca mais!
Maria Gorete Marques de Jesus é pesquisadora Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP)
Thais Lemos Duarte é pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG)