Artigo | Criminalizar o consumo de drogas prejudica a saúde e a segurança pública

PEC aprovada no Senado nesta semana mantém política atual da “guerra às drogas”, que privilegia encarceramento em massa e ações violentas da polícia

Bloco pede o fim das prisões na Marcha da Maconha 2023.
Bloco pede o fim das prisões por na Marcha da Maconha 2023, na capital paulista. Foto: Beatriz Drague Ramos / Ponte Jornalismo

A aprovação no Senado de uma proposta de emenda constitucional para incluir a criminalização da posse e do porte de drogas para uso pessoal na Constituição (PEC 45/2023) é um gravíssimo retrocesso. Décadas de uma política de drogas fracassada no Brasil deveriam deixar claro que o direito penal é simplesmente ineficaz para lidar com o uso nocivo de drogas e leva a sérios abusos de direitos humanos. 

A legislação atual já prevê a criminalização da posse de drogas para uso pessoal. Consolidar esse modelo na Constituição tornaria muito mais difícil adotar as reformas necessárias para impulsionar uma estratégia baseada na ciência para proteger a saúde de forma eficaz.

O presidente do Senado e autor da proposta, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse durante a votação que “o usuário não pode ser criminalizado por ser dependente químico” e que “a criminalização está no porte de uma substância tida como ilícita”. Na prática, quer dizer que o usuário será sim criminalizado por portar drogas para seu consumo. 

Na verdade, essa é a situação atual.  Embora o consumo seja punível com alternativas à prisão—como advertência, prestação de serviço comunitário ou comparecimento à programa ou curso educativo—, a condenação por si só sujeita pessoas à discriminação e ao estigma, que podem levar à exclusão do mercado de trabalho, de oportunidades de moradia, entre outras.

Além disso, sem parâmetros objetivos para diferenciar usuários de traficantes, essa avaliação fica a critério da polícia e do sistema judiciário – o que abre a porta para uma aplicação discriminatória da lei.

Embora as pessoas negras representem cerca de 57% da população do Brasil, correspondem a 68% dos réus processados por tráfico de drogas, segundo um estudo de 2023 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Pesquisadores analisaram ações criminais por tráfico de drogas com decisão terminativa no primeiro semestre de 2019, envolvendo cerca de 41.000 réus, e concluíram que “o processamento judicial de crimes de drogas pune, prioritariamente, pessoas negras, jovens e pouco escolarizadas que portam pequenas quantidades de drogas”.

A proposta de emenda constitucional poderia agravar o problema. Além de manter a criminalização independentemente da quantidade, os usuários seriam diferenciados de traficantes pelas “circunstâncias fáticas do caso concreto”, uma determinação vaga que estaria aberta a abusos.

O modelo atual contribuiu para o aumento explosivo da população carcerária do Brasil nas últimas duas décadas. Em 2005, ano anterior à entrada em vigor da lei de drogas no Brasil, apenas 9% das pessoas presas estavam detidas por tráfico de drogas, em comparação com os atuais 28%; entre as mulheres é 51%.

Nas prisões brasileiras, onde grupos criminosos se aproveitam das terríveis condições para recrutar novos membros, pessoas que usam drogas e que foram injustamente detidas e julgadas como traficantes, assim como pequenos traficantes, podem ser forçados a buscar a proteção das próprias facções criminosas que a legislação busca combater. De forma mais ampla, a proibição das drogas cria uma enorme fonte de recursos para o crime organizado, alimentando a corrupção e a violência. 

Além disso, a polícia frequentemente usa a aplicação da lei de drogas como justificativa para incursões em comunidades que, rotineiramente, terminam em mortes. A polícia matou mais de 6.000 pessoas a cada ano desde 2018, a grande maioria delas negras. 

Pacheco deixou claro que a emenda é uma resposta a um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que pode descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. Durante a sessão de votação, parlamentares pareciam mais preocupados em fazer frente à Corte do que em explicar o porquê seria necessário cimentar uma política de drogas fracassada na Constituição

O governo Lula – que também enfrenta atritos com o Congresso – optou por não orientar o voto da base, com o líder no Senado, afirmando que caberia à “consciência” de cada um dos parlamentares. É imprescindível que corrija o erro na Câmara dos Deputados e demostre posição firme contra o projeto.

Pesquisas da Human Rights Watch (HRW) em todo o mundo constataram que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconsistente com os direitos à autonomia e à privacidade, bem como com o princípio básico da proporcionalidade da pena. Esses princípios são amplamente reconhecidos pelo direito internacional, incluindo o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos ratificados pelo Brasil.

A criminalização também prejudica o direito à saúde. O medo das sanções criminais impede que as pessoas que usam drogas utilizem serviços e tratamentos de saúde e aumenta o risco de sofrerem violência, discriminação e doenças graves. As proibições criminais também têm impedido o uso de drogas para pesquisas médicas legítimas e o acesso de pacientes a drogas para tratamentos paliativos e contra a dor.

Os governos não deveriam punir uma pessoa simplesmente pelo uso de drogas quando ela não está prejudicando outras pessoas. Para proteger terceiros de danos associados, como dirigir sob o efeito de drogas, as autoridades podem impor, em consonância com os princípios de direitos humanos, sanções criminais proporcionais às condutas que causam ou colocam terceiros em sérios riscos.

Em vez de criminalizar usuários de drogas, as autoridades deveriam se concentrar em desmantelar as organizações do crime organizado e as redes corruptas que as sustentam, além de garantir a responsabilização pela grave violência. Os governos também deveriam explorar alternativas à proibição que dependam menos da criminalização e sejam mais focadas em estratégias de saúde pública e em diferentes formas de regulamentação e controle.

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A Câmara dos Deputados deveria olhar as experiências além das suas fronteiras e rejeitar a emenda constitucional. 

As evidências internacionais mostram que a descriminalização do consumo – combinada com o acesso efetivo a tratamentos voluntários e outros apoios, baseados na ciência – protege e promove a saúde de forma muito mais eficaz do que a criminalização.

*César Muñoz é o diretor da Human Rights Watch no Brasil e Andrea Carvalho é pesquisadora da Human Rights Watch no Brasil.

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