Artigo | Cruz queimando, braço em riste: o que a PM de SP está celebrando?

    O tenente-coronel José Thomaz Costa Júnior, comandante do 9º Baep de São José do Rio Preto (SP), negou qualquer “ritual” ou “conotação ideológica” na tétrica cerimônia divulgada em vídeo esta semana. O que seria então?

    PMs falaram em “sacrifício da própria vida” ao fazer juramento em cerimônia com braços em riste, lembrando a saudação nazista, e cruz em chamas, ao estilo Ku Klux Klan | Foto: Reprodução

    Uma cerimônia noturna com homens com braços em riste e uma cruz pegando fogo. Estes elementos por si remetem a encontros da Ku Klux Klan, famoso grupo de extrema-direita estadunidense reconhecido por seus uniformes, suas cruzes queimadas e o linchamento de pessoas negras durante a segregação racial do país. 

    A referência histórica do braço em riste é o nazifascismo da primeira metade do século XX e o neonazismo. Mas não foi em nenhum desses grupos de extrema-direita que vimos esses símbolos essa semana, mas em uma instituição pública chamada Polícia Militar do Estado de São Paulo. Era uma solenidade de entrega de braçal, quando PMs encerram um estágio operacional e são efetivamente incorporados à unidade. 

    Leia mais: Cruz em chamas: chefe de unidade da PM nega ‘ritual’ ou ‘conotação ideológica’

    No Instagram da Ponte, houve a defesa inflamada da prática, afirmando que é comum. Mas, como nossa reportagem bem destacou: “É comum que esse tipo de solenidade seja feita em batalhões e à luz do dia, com juramentos perante as bandeiras do estado e do Brasil”. Provavelmente, sem queima de cruzes (contém ironia). É sintomático ver toda essa simbologia ser postada no perfil oficial da corporação e de seu comandante. Ou seja, parece que houve alguma conivência dos superiores desse batalhão com a realização desse…ritual ou pelo menos, com a divulgação pública em canais oficiais. 

    Corpos negros como alvo

    A maioria dos corpos mortos pela PM são negros, alvos tanto da Klan como da extrema-direita supermacista branca, o que inclui os nazismos e fascismos de nosso tempo. Dados oficiais da própria Secretaria da Segurança Pública de São Paulo demonstram que 62% das pessoas mortas pelas polícias eram negras. Dados nacionais também apontam a mesma tendência. No início da semana, contamos a história de Ngange Mbaye, ambulante senegalês morto pela PM durante uma ação no Brás. No protesto da comunidade senegalesa, nossa repórter Catarina Duarte e nosso fotojornalista Daniel Arroyo ouviram sobre o medo que essas pessoas têm de abordagens policiais. 

    Exibir publicamente um vídeo com símbolos que carregam em si uma longa história de supremacia branca, opressão e morte é como um atestado de, no mínimo, simpatia a essas ideologias. Para o tenente-coronel José Thomaz Costa Júnior, comandante da unidade do Batalhão de Ações Especiais de Polícia (9º Baep), no entanto, a ação não tinha nenhuma conotação ideológica e se tratava de mera “celebração a policiais recém-chegados e que fogo em cruz simboliza renascimento do guerreiro”.

    Leia mais: Batalhão da PM que fez cerimônia com cruz em chamas já havia feito treino com ‘favela’ como inimigo

    Além de reforçar o descolamento total da realidade sócio-histórica, o comandante ainda pontua o papel belicoso da PM ao usar a expressão: guerreiro. Afinal, quem se nomeia assim tem como trabalho lutar contra um inimigo. Qual é o inimigo da polícia? 

    Nosso repórter, Paulo Batistella, responsável pela cobertura do caso, apurou um elemento do passado da mesma corporação: uma icônica foto no qual policiais fazem treinamento com armas em tapumes escrito “Favela”. Não está escrito Jardins ou Alphaville, mas o alvo específico. Para quem apoia as práticas de violência policial (se você fizer uma leitura rápida dos comentários do instagram vai achar vários), é natural que a PM treine se baseando nos lugares onde tem mais trabalho. 

    A cruz em evento noturno de iniciação de novos PMs no batalhão: rituais de guerra e morte | Foto: Reprodução

    Símbolos que matam

    Não é demais lembrar que o atual vice-prefeito de São Paulo, Ricardo Mello Araújo, que é um coronel aposentado da PM  e ex-comandante da Rota, foi responsável por escancarar publicamente a política da polícia: “É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado”. 

    Na Ponte, não nos calamos diante dos símbolos que matam — porque já conhecemos de cor seus efeitos no corpo negro, periférico, migrante. Quando a violência do Estado se fantasia de tradição, cerimônia ou protocolo, é nossa missão rasgar esse véu e mostrar o que ele esconde: um projeto de morte que se atualiza com o tempo, mas mantém os mesmos alvos.

    Seguimos firmes em denunciar o racismo institucional, as práticas policiais autoritárias e o silenciamento dos que mais precisam ser ouvidos. Porque enquanto a PM encena rituais de guerra, ela mesma continua matando. E a Ponte está aqui pra lembrar isso — com nomes, rostos, histórias e provas. Jornalismo é nossa arma. Justiça, o que buscamos.

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