Prisão do cantor Belo após show no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, veio acompanhada do já costumeiro discurso de criminalização das comunidades cariocas, tanto nas redes sociais quanto nas mídias tradicionais
Na noite da última sexta-feira (12/2) aconteceu o show do cantor Marcelo Pires Vieira, o Belo, no pátio do Ciep 326 Professor César Pernetta, no Parque União, uma das 16 favelas da Maré, na Zona Norte do Rio. O show varou a madrugada e terminou na manhã de sábado de carnaval. Apesar da pandemia, que fez com que eventos de carnaval fossem suspensos, a apresentação reuniu uma multidão de pessoas de dentro e fora das favelas e foi flagrada pelo helicóptero do G1. Muita gente sem máscara, sem cumprir o isolamento social, como aconteceu em outras diversas partes da cidade, muitas na Zona Sul do Rio. A apresentação de Belo, como as outras aglomerações na cidade durante o carnaval, foi filmada pelo público e postada nas redes sociais.
Não demorou muito para que surgissem críticas ácidas e os mandados de prisão para os organizadores do evento e para cantor, por estarem realizando um evento que ia contra normas sanitárias e contra o decreto da prefeitura que proibiu festas durante o período do carnaval. A diferença foi que nas outras festas da zona sul da cidade, onde também houve aglomeração, não houve prisões. Desde a sexta-feira (12), dia em que se iniciou o decreto, foram contabilizadas 83 inspeções sanitárias, com 30 interdições e 63 infrações em estabelecimentos por aglomeração e descumprimento de outras medidas de saúde, além da falta de licenciamento. Durante as ações conjuntas, a Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização da Seop também registrou 59 vistorias, com 24 notificações, entre autuações e interdições administrativas, por falta de alvará e excesso de mesas e cadeiras. A reflexão aqui se dá em: por que o Belo foi preso? Por estar na Maré?
Boa parte da mídia enfatizou que o cantor tinha relação com o tráfico de drogas apenas por ele estar dentro da Maré. A CNN Brasil foi mais longe: definiu a Maré como ‘’área de tráfico’’, sem direito à citação geográfica. Na Maré, não se pode negar, tem grupos civis armados que detém um poder historicamente negligenciado pelo poder público, para infelicidade de quem ali mora. Mas é muito mais que isso. São 140 mil moradores, que vivem e trabalham nas mais diversas funções, pessoas que lutam diariamente honestamente para ter seu sustento. O conjunto de 16 favelas tem 48 escolas, três mil empreendimentos comerciais e é maior que 96% dos municípios brasileiros, mas para muitos a Maré é sinônimo de violência, e não é.
O cantor, que foi preso pela Delegacia de Combate às Drogas (DCOD), e os demais investigados vão responder por quatro crimes: infração de medida sanitária; crime de epidemia; invasão de prédio público; associação criminosa (o show, segundo a polícia, foi organizado em comum acordo com o tráfico de drogas). Mas e em relação às demais festas que foram interditadas na cidade? Os seus produtores também foram presos e também vão responder a esses crimes?
Outros questionamentos aparecem também. A realidade cotidiana nas favelas e periferias do Brasil têm outro ritmo, e não se pode dar ao luxo, muitas vezes, de cumprir uma quarentena porque as pessoas que aqui vivem precisam trabalhar para não morrerem de fome. A pandemia escancarou a desigualdade e por aqui não foi diferente. Pegar transporte público lotado – porque o número de ônibus reduziu pela metade – para servir as casas das zonas mais abastadas da cidade, foi rotina para grande parte dos moradores mareenses. Se arriscar diariamente num período pandêmico para sobreviver. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Nesse sentido, que tal falar da favela sem sugerir “grotescamente” que tudo o que acontece por aqui é necessariamente algo criminoso? O quanto esses territórios são criminalizados só pelo fato de se chamarem favela? O caso Belo escancarou essa questão. Festas no Leblon com aglomeração de pessoas foram notificadas e multadas, na Maré houve prisão.
Afirmar que houve “invasão de prédio público” é a ação desesperada de um Estado e de uma polícia que desconhece a realidade das favelas da cidade que governa e quer ficar bem na foto, ou uma negação histórica preconceituosa, talvez. Historicamente, a cultura periférica, que em sua maioria é negra, tem as quadras das escolas como demarcação de suas manifestações para festejar movimentos artísticos/políticos/sociais como os bailes charme, bailes de hip-hop dos anos 80/90s e até mesmo os tradicionais bailes no CIEP Gustavo Capanema, que hoje se encontra em obras – não por depreciação de moradores e sim por negligência do Estado com a manutenção das escolas públicas. Se estava acontecendo uma festa ali, não foi mediante a uma invasão. O território é da favela, não há invasão, nem depredação, há o comum acordo com quem vai frequentar o espaço e zelar por ele, porque é deles, é nosso.
O território é da favela, não há invasão, nem depredação, há o comum acordo com quem vai frequentar o espaço e zelar por ele, porque é deles, é nosso.
Embora as festas clandestinas estejam acontecendo por todo o Brasil, nos condomínios da Barra da Tijuca e nas ilhas da Região dos Lagos, com outros cantores famosos mantendo agendas de show normalmente durante a pandemia, prender o Belo por conta desse show é muito simbólico! É impor uma proibição que para a favela já é de costume. A opressão policial quando não proíbe o baile com ação de guerra, tiros e bombas, oprime de uma forma mais “suscinta”, mas sem deixar de retaliar. Porque o mais importante é sustentar a falácia de que existe uma “guerra ao tráfico” e demarcar o lugar da favela na sociedade sempre como algo que não é bom, nem certo, nem bonito, nem inocente.
As atitudes mais radicais para tratar com a favela, são sempre as escolhidas. Não se estabelece diálogo, só obediência. O Estado não enxerga os moradores das comunidades como cidadãos, não reconhece o dinheiro deles como valioso, não os reconhece como contribuintes mesmo quando pagam impostos o ano inteiro, não reconhece o direito ao lazer. O diálogo do Governo sempre insinua a despotência da favela, insinua que a favela está recebendo “ajuda”, que tem de ser grata, não há respeito pelo favelado e sabemos disso.
Ao contrário do que aconteceu com o DJ Rennan Da Penha, que foi preso acusado de associação ao tráfico por promover bailes na comunidade onde nasceu e cresceu, Belo já está em liberdade, mediante a um alvará de soltura apresentado por sua defesa. Já Rennan ficou preso por sete meses por nada; apenas especulações foram apresentadas.
Os demais veículos de imprensa fomentam o comportamento preconceituoso, criminalizando o território, sempre deixando a entender que a favela é sinônimo apenas de tráfico, crime e violência, enquanto não se preocupam com narrativas reais de vidas singulares a esses estereótipos, de cidadãos que trabalham incansavelmente, estudam, produzem, cuidam e lutam. Se nossa sociedade age assim, mais importante ainda que jornalistas comecem a se preocupar em transformar as narrativas apelativas em falas humanizadas em prol de uma reparação que já deveria estar acontecendo, sendo necessária e imediata.