Artigo | De olho em 2026, Derrite ‘sumiu’ e violência policial foi ‘normalizada’

    Secretário da segurança pública de SP alardeou em entrevista “desaparecimento” da Cracolândia, mas foi ele quem sumiu durante a crise na favela do Moinho — e passou de demissionário a candidato da extrema-direita ao Senado

    Manifestantes pedem a saída do secretário da segurança pública Guilherme Derrite em ato na capital paulista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Pode parecer contraditório, mas 2024 até terminou com alguma esperança de melhora para o Brasil a respeito da violência policial. Sem freios sob o comando de Tarcísio e Derrite desde a Operação Escudo no fim de 2023, a PM paulista vinha protagonizando uma série de vídeos da mais pura brutalidade sem o menor pudor. Vídeos que enfim furaram a bolha de movimentos sociais engajados e populações diretamente afetadas, gerando certo clamor nos maiores veículos de mídia por um imediato controle sobre uma PM “descontrolada”.

    Mas, no Brasil da última década, há sempre uma linha tênue entre estar esperançoso e estar mal-informado. Se o fato de São Paulo ter se tornado o centro do projeto político da direita brasileira para o país pareceu, à primeira vista, ser um fator de constrangimento para Tarcísio, não demorou muito para que ele se invertesse, constrangendo as próprias críticas à política de segurança pública chefiada por Derrite no estado.

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    Parafraseando Sérgio Moro, cujas trocas de mensagens com o MP vazadas em 2019 mostraram que o ex-juiz não queria abordar denúncias sobre FHC para não “melindrar alguém cujo apoio é importante”, instituições e grandes veículos de imprensa baixaram o tom das denúncias com a virada de ano para não “melindrar” aquele que deve ser seu candidato nacional em 2026.

    Tarcísio caminha na corda bamba da acirrada polarização política brasileira. Não pode abrir mão do grande eleitorado radicalizado, mas precisa abocanhar outro bom número de votos entre aqueles que pedem por alguma ponderação, já que, nas eleições presidenciais dos últimos anos, nem direita nem esquerda conseguem obter uma vantagem confortável sobre o outro lado. Nesse equilíbrio, parte da imprensa e das instituições garante o lado “more presidential” (como se diz nos EUA) do governador.

    Melhor que a negação é a justificação

    O acordo recentemente realizado no STF, por exemplo, enfim deu a vitória a Tarcísio e Derrite contra as câmeras corporais na PM paulista, afagando suas bases policiais com o fim das gravações ininterruptas e com um bom nível de “autocontrole” sobre o sistema, ao mesmo tempo em que foi noticiado como uma “ampliação” do programa pelo “moderado” governador.

    Mas nem sempre este movimento político envolve uma imagem absurdamente irreal de que o governo paulista teria parado de cometer violências contra a própria população. Até porque, como já dissemos, há uma base radicalizada que de fato quer sangue. Por vezes, melhor que a negação é a justificação. Um bom exemplo é a atual situação no centro da capital.

    Leia também: Tarcísio recebe aval do STF e PM-SP não terá mais câmeras com gravação ininterrupta

    Na cobertura dos fatos, as denúncias sobre truculência da PM nas desapropriações do Moinho e sobre ameaças e torturas perpetradas por GCMs contra a população de rua na “Craco” são colocadas lado a lado com manchetes que denunciam o “QG do Crime” que estaria situado na favela. Nas palavras de editorial do Estadão, as dúvidas sobre o esvaziamento da Cracolândia contrastam com a certeza de que a Favela do Moinho seria mesmo “um entreposto do PCC no centro”.

    Pouco importa se realmente há alguma relação entre o Moinho e a Cracolândia, e mesmo algo fático, como os usuários de drogas terem sido varridos para debaixo de algum tapete ou não, é jogado para o campo do “escolha o seu lado”, abrindo espaço para um falso dilema entre políticas públicas sociais e políticas de “pulso firme contra o crime”.

    Empreitada ‘more presidential’

    Entre moderações mentirosas e justificativas infundadas, nem parece que, há 3 meses, São Paulo virava manchete internacional por ser detentora da “força policial mais perigosa do mundo”. Não houve qualquer mudança estrutural na segurança pública paulista desde o editorial em que até mesmo o conservador Estadão pedia a demissão do Secretário Derrite.

    Apesar da leve queda, a PM paulista ainda foi responsável por 158 mortos no 1º trimestre de 2025. Há alguma diferença entre a PM que atirou um homem da ponte em dezembro passado e a que espancou um homem no último dia 18 na Zona Sul da capital? Por que, então, os jornalões teriam de mudar esta posição editorial?

    É bem verdade que não é apenas Tarcísio que está em sua empreitada “more presidential”. Na política de horrores brasileira, Derrite se tornou outra peça central da extrema-direita nacional. Sua desfiliação do PL e posterior filiação ao PP foi parte de grande acordo suprapartidário para viabilizá-lo como o nome da direita radical para o Senado. Seu nome passar a ser cogitado em pesquisas para governador não é algo que possa ser menosprezado. Não no Brasil dos anos 2020…

    Leia mais: Letalidade policial em SP piora de novo e retoma patamar de 2024

    Mirando sua própria ascensão, Derrite também está mais quieto do que em 2024, quando debochava dizendo que “não sabia que eram 56” mortos na Operação Verão. Com as mãos suficientemente sujas de sangue para animar o eleitorado radical, talvez tenha sido convencido de que “jogar parado” a partir de agora lhe garanta alguns votos a mais de segurança (embora seja difícil crer que o expoente do “Partido da PM Paulista” consiga se manter muitos meses tão retraído).

    Fato é que o cuidado geral com Tarcísio favoreceu o seu jogo. Sua cabeça foi pedida, e Tarcísio não a entregou. A memória curta de parte da imprensa passa uma mensagem de que nada do que aconteceu no ano passado tenha sido tão grave assim. A leniência das instituições que deveriam responsabilizá-lo e não o fizeram, também.

    Aconteceu, então, aquilo que de pior poderia acontecer: como parte central do projeto político que envolve Tarcísio, Derrite e sua PM foram normalizados na política nacional.

    Escalada fascista

    No livro “Primeiro eles tomaram Roma”, o historiador David Broder oferece uma linha do tempo interessante de como a extrema-direita italiana voltou ao poder no país. De um fanfarrão midiático como Berlusconi, passando pela pseudo-moderna antipolítica do Cinco Estrelas e pelo preconceituoso regionalismo da Liga Norte, a Itália foi subindo degrau por degrau na normalização de absurdos.

    Hoje, é dominada pelo partido que saiu das fileiras dos autodeclarados herdeiros de Mussolini, representado na figura de Giorgia Meloni. Poucos mais atentos imaginaram que este seria o topo da escada cujo primeiro degrau fora pisado ainda lá nos anos 1990. Esta, talvez, seja a característica principal da escalada fascista no mundo atual em que uma velha ordem desmorona em suas próprias contradições: entre negações e justificações, essa força é normalizada pouco a pouco, degrau por degrau, até se tornar onipresente.

    Em São Paulo, a crise policial do fim do ano passado ter “acabado em pizza” é um recado para todo o país: mais um degrau do absurdo foi subido.

    Almir Felitte é advogado, mestre em direito pela FDRP-USP, doutorando em ciências sociais pela Unifesp e autor de “História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?” (Editora Worney Almeida de Souza, 2023)

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