Leia trecho inĆ©dito do novo livro da ensaĆsta norte-americana Patricia Hill Collins sobre a vereadora carioca cuja morte, afirma Collins, “refletiu uma reviravolta nas instituiƧƵes democrĆ”ticas federais do Brasil”

IntersecƧƵes letais: raƧa, gĆŖnero e violĆŖncia (2024) Ć© o nome do novo livro da ensaĆsta norte-americana Patricia Hill Collins que a editora Boitempo, parceira da Ponte no Tamo Junto lanƧa este mĆŖs. A obra analisa casos reais de agressƵes contra grupos ou indivĆduos especĆficos e cita ideias, aƧƵes e movimentos de resistĆŖncia surgidos em vĆ”rios cantos do mundo como formas de combater o que se tornou um grande problema social. Collins aplicaĀ o conceito de interseccionalidade de maneira acessĆvel em anĆ”lises sobre as origens e consequĆŖncias da desigualdade e da injustiƧa em diversos contextos. A obra demonstra como a violĆŖncia afeta de maneira distinta as pessoas de acordo com sua classe social, etnia, nacionalidade e sexualidade.
Patricia Hill Collins é professora emérita do departamento de sociologia da Universidade de Maryland e foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia. à considerada, ao lado de Angela Davis e bell hooks, uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro nos EUA, autora de obras como Interseccionalidade, Bem mais que ideias, Pensamento feminista negro e Do Black Power ao Hip-Hop: Racismo, nacionalismo e feminismo.
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Leia abaixo um trecho inĆ©dito do livro, que fala da vereadora e ativista brasileira Marielle Franco, vĆtima-sĆmbolo dessa violĆŖncia de gĆŖnero e de raƧa:
Em 2018, quando Marielle Franco se aproximou da tribuna para fazer seu discurso em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, nem todos os membros da CĆ¢mara de Vereadores do Rio de Janeiro quiseram ouvi-la. Como presidente da ComissĆ£o para a Defesa das Mulheres, Marielle havia defendido vigorosamente a temĆ”tica das mulheres nos debates legislativos desde sua eleição, dois anos antes. Ela manifestava preocupaƧƵes sobre os direitos humanos das mulheres e tambĆ©m das populaƧƵes empobrecidas, e em grande parte negras, que vivem nas favelas do Rio. Sendo a primeira mulher negra eleita para a CĆ¢mara Municipal, ela propĆ“s projetos de lei que representavam os interesses desses grupos ā por exemplo, creches noturnas para crianƧas cujos pais tinham de trabalhar ou estudar durante a noite, uma campanha contra a violĆŖncia e o assĆ©dio Ć s mulheres, sobretudo nas escolas, e mais transparĆŖncia nos contratos feitos pela prefeitura. Ela estava especialmente preocupada com a potencial corrupção que atingia o sistema de transporte pĆŗblico, bem como com os contratos concedidos a empresas envolvidas na construção de estĆ”dios para a Copa do Mundo Fifa de 2014 e os Jogos OlĆmpicos de 2016.
Quando Marielle Franco se levantou para discursar, muitos apoiadores e oponentes estavam presentes. Ela comeƧou reconhecendo a luta internacional das mulheres pelos direitos humanos:
Este 8 de marƧo Ć© um marƧo histórico, um marƧo em que falamos de flores, lutas e resistĆŖncias, mas um marƧo que nĆ£o comeƧa agora e muito menos Ć© apenas um mĆŖs para pautar a centralidade da luta das mulheres. A luta por uma vida digna, a luta pelos direitos humanos, a luta pelo direito Ć vida das mulheres precisa ser lembrada, e nĆ£o Ć© de hoje, Ć© de sĆ©culos [ā¦] quando, nas greves e manifestaƧƵes, [ā¦] mulheres com firmeza, lutaram pelos direitos trabalhistas¹.
Ela tambĆ©m falou sobre as diversas expressƵes de violĆŖncia que afetaram as mulheres no Brasil. Mas, enquanto ela falava, alguĆ©m a interrompeu gritando āViva Ustraā ā Ustra, militar de alto escalĆ£o que torturou pessoas durante os 21 anos de ditadura no Brasil.
Recusando-se a ser silenciada pela interrupção, Marielle continuou:Tem um senhor que estÔ defendendo a ditadura e falando alguma coisa contrÔria? à isso? Eu peço que a presidência da casa, no caso de manifestações que venham a atrapalhar minha fala, proceda como fazemos quando a galeria interrompe qualquer vereador. Não serei interrompida, não aturo interrupção dos vereadores desta casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita presidente da Comissão da Mulher nesta casa!
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A multidĆ£o aplaudiu, e a presidente da CĆ¢mara Municipal [TĆ¢nia Bastos] interveio e pediu mais seguranƧa. Após agradecer a intervenção da moderadora, Marielle Franco respondeu apontando os esforƧos de longa data para silenciar e controlar as mulheres: āNĆ£o serĆ” a Ćŗltima nem a primeira vez, mas o embate, para quem vem da favelaā. Recusando-se a recuar, ela reiterou: āMinha fala estava falando da violĆŖncia contra as mulheres [ā¦]. Nós somos violadas e violentadas hĆ” muito tempoā.
Apesar da interrupção, Marielle continuou falando, abordando diversas questƵes relacionadas Ć violĆŖncia, incluindo a ocupação militar das favelas que ocorria na Ć©poca, os assassinatos nĆ£o resolvidos de lĆ©sbicas, o assĆ©dio nas ruas enfrentado pelas mulheres negras e como as armas de fogo nĆ£o eram a solução para a violĆŖncia. Ć significativo que ela vinculasse essas expressƵes de violĆŖncia Ć s desigualdades sociais de raƧa, gĆŖnero, sexualidade e classe na polĆtica brasileira. Ela continuou listando āuma diversidade de lutas na pauta pela vida das mulheresā, tais como a legalização do aborto, a luta por melhores maternidades e as questƵes enfrentadas pelas mulheres no empreendedorismo. Ela encerrou o discurso com um forte apelo Ć ação: āĆs mulheres que constroem esta história, que estĆ£o junto comigo. Vamos que vamos!ā.
Uma semana depois desse discurso inflamado, em 14 de marƧo de 2018, assassinos profissionais alvejaram com balas o carro em que Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, estavam. Os atiradores fugiram. Marielle Franco tinha 38 anos. Os assassinos esperaram que ela saĆsse de uma reuniĆ£o e, em dois carros, a seguiram por vĆ”rios quilĆ“metros. Na manhĆ£ seguinte a sua morte, dezenas de milhares de pessoas aglomeraram-se nas ruas do Rio de Janeiro e de todo o Brasil expressando pesar e raiva pelo assassinato. A morte dela tambĆ©m provocou surpresa ao redor do mundo.
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Esse caso permanece sem solução², e muitos veem sua morte como um assassinato polĆtico que visava a suprimir as ideias que ela representava. Assassinatos de lĆderes polĆticos carismĆ”ticos com frequĆŖncia ocorrem durante perĆodos de mudanƧa social. Marielle Franco havia emergido como uma lĆder da base popular durante um perĆodo em que o Brasil continuava a lutar com seus legados históricos de colonialismo e escravismo e com a sua história polĆtica de ditadura.
O assassinato de Marielle ocorreu no contexto histórico, social e polĆtico do Brasil como Estado-nação. Como sugere o documentĆ”rio Democracia em vertigem (2019), a luta do Brasil pela democracia tem um longo arco que atravessa uma história com escravismo, um perĆodo extenso de ditadura e uma jovem democracia florescente que continua a ser desafiada por tendĆŖncias autoritĆ”rias.
As lutas pela democracia participativa no Brasil ampliaram a participação polĆtica para incluir mulheres negras que hĆ” muito eram excluĆdas. O envolvimento de Benedita da Silva, mulher afro-brasileira, no Partido dos Trabalhadores e o surgimento do movimento de mulheres negras no Brasil abriram caminhos para a participação polĆtica das mulheres negras³. Marielle fazia parte de uma constelação de movimentos sociais que visava a reformar as instituiƧƵes sociais democrĆ”ticas do Brasil.
Os movimentos sociais que influenciaram sua polĆtica almejavam melhorar a vida de pessoas empobrecidas, negras e indĆgenas, de mulheres e pessoas LGBTQ, responsabilizando o governo. Ela apoiou polĆticas destinadas a melhorar os sistemas de saĆŗde pĆŗblica, expandir a educação pĆŗblica, defender a floresta amazĆ“nica e proteger todos os cidadĆ£os da violĆŖncia.
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A pauta de direitos humanos dela era baseada nos desafios polĆticos, sociais e intelectuais especĆficos da implementação dessas ideias no paĆs. NĆ£o Ć© incomum que assassinatos de ativistas como Marielle ocorram durante perĆodos de reviravolta polĆtica e mudanƧa social, quando tanto as ideias como a polĆtica que elas geram estĆ£o em fluxo. O ano de sua morte certamente refletiu uma reviravolta nas instituiƧƵes democrĆ”ticas federais do Brasil. Seis meses depois, um candidato que defende uma ideologia de extrema direita, Jair Bolsonaro, que tinha ligaƧƵes diretas com a antiga ditadura militar, foi eleito presidente.
Ao insistir em ser ouvida durante seu discurso pelo Dia da Mulher, Marielle Franco defendeu a democracia como veĆculo para os direitos humanos. As palavras dela apontaram para as muitas formas de violĆŖncia interseccional cotidiana que ela e os cidadĆ£os brasileiros enfrentaram ao defender sua democracia. Concentrando-se nas mulheres negras, população que tem sido especialmente prejudicada pela violĆŖncia de rua nas favelas e pela violĆŖncia dirigida a seus filhos e suas filhas, Marielle argumentou que a defesa dos direitos humanos das mulheres negras por meio da resistĆŖncia Ć violĆŖncia melhoraria a vida de muitas outras pessoas.
Muitas mulheres negras sĆ£o vĆtimas de violĆŖncia, violĆŖncia domĆ©stica e assĆ©dio sexual em empregos como trabalhadoras domĆ©sticas. Elas vivem em comunidades onde a polĆcia faz vista grossa e oferece pouca proteção contra grupos que controlam as ruas. Por meio de suas ideias e aƧƵes, Franco contribuiu para uma comunidade de fala que apoiaria a plena humanidade de cada indivĆduo no Brasil e tambĆ©m as instituiƧƵes democrĆ”ticas que seriam necessĆ”rias para defender e cumprir os direitos de todas as pessoas.
Franco nĆ£o foi morta apenas por fazer aquele discurso na CĆ¢mara do Rio de Janeiro. No que diz respeito a pessoas como ela, situadas em intersecƧƵes letais de gĆŖnero, raƧa, sexualidade e classe, falar a verdade sobre suas ideias pode ser uma grande ameaƧa para quem estĆ” no poder. Viver visivelmente em um corpo honesto como uma mĆ£e lĆ©sbica negra e falar sobre isso pode gerar violĆŖncia interseccional ā mas tambĆ©m ajudou Marielle a ganhar uma sensação de liberdade.
Como mulher negra em um paĆs com elevados nĆveis de pobreza e onde mais de metade da população Ć© negra, Franco sabia que ameaƧava as ideias tradicionais de gĆŖnero, sexualidade, raƧa e classe. Mas foi visĆvel e eloquente mesmo assim. Recusou-se a moderar suas opiniƵes, apesar de estar sob vigilĆ¢ncia. Desafiar os efeitos da violĆŖncia interseccional sobre homens e mulheres negros Ć© uma coisa; desafiar o sistema de ideias que explica e legitima a violĆŖncia interseccional sancionada pelo Estado Ć© outra. Uma polĆtica do corpo honesto gera essas contradiƧƵes entre risco e recompensa.
Notas
¹ Quero agradecer Clarice Cardoso por chamar minha atenção para esse discurso e por traduzi-lo.
² Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados em 14 de marƧo de 2018. Seis anos depois, em 24 de marƧo de 2024, o processo de investigação do crime foi encerrado pelo MinistĆ©rio da JustiƧa com a prisĆ£o de Domingos BrazĆ£o, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro; Chiquinho BrazĆ£o, deputado federal pelo Rio de Janeiro do partido UniĆ£o Brasil; e Rivaldo Barbosa, ex-chefe da PolĆcia Civil do Rio de Janeiro. Eles foram apontados nas investigaƧƵes como mandantes do crime. AlĆ©m deles, sĆ£o rĆ©us no caso: o ex-policial militar Ćlcio Queiroz e o policial militar reformado Ronnie Lessa. Ambos sĆ£o apontados como executores do crime, Queiroz como o motorista do carro que perseguiu as vĆtimas e Lessa como autor dos disparos. (N. T.)
³ Medea Benjamin e Maisa MendonƧa, Benedita da Silva: An Afro-Brazilian Womanās Story of Politics and Love (Oakland, Institute for Food and Development Policy, Global Exchange, 1997) [ed. bras.: Benedita, Rio de Janeiro, Mauad, 1997]; Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, Intersectionality (2. ed., Cambridge, Polity, 2020 [2016]), p. 25-31 [ed. bras.: Interseccionalidade, trad. Rane Souza, SĆ£o Paulo, Boitempo, 2021, p. 39-45].