Profissionais, considerados metade agentes policiais e metade agentes do Direito, ocupam lugar indefinido que efetiva políticas autoritárias na segurança pública
Hoje quero falar com o delegado. Aqueles que trabalham em delegacias e distritos policiais já ouviram em algum momento esse apelo. O que pouco se sabe é como esse personagem de destaque no sistema penal brasileiro se configura como um cargo singular, quase que desconhecido pelas demais corporações e sistemas policiais do mundo.
Pode acreditar, o cargo de delegado de polícia é uma invenção brasileira, que traduz a formatação jurídica do ato de polícia e historicamente tem sido utilizado de forma autoritária, em decisões que contemplam verdadeiras condenações e absolvições de suspeitos sem o devido processo legal.
O indiciamento, ato exclusivo da autoridade policial, conforme previsto no art. 2º §6º, da lei 12.830/2013, revela a convicção fundamentada do delegado de que o suspeito é autor de um crime. Uma espécie de nota de culpa, que será entregue à pessoa investigada, fora da situação de flagrante delito. Como consequência, temos o nome do investigado anotado nos sistemas policiais como criminoso, podendo ser pesquisado e identificado por outros policiais como autor de crime, ainda que se mantenha em liberdade e sequer aja o início de um processo penal para se defender.
O Estatuto do Desarmamento restringe a aquisição e porte de armas de fogo para pessoas indiciadas em inquérito policial, mesmo que nunca venham a ser processadas. Isso para não falar dos efeitos sociais negativos, como nas reportagens jornalísticas padrões, que se referem aos antecedentes criminais de uma pessoa, a partir das suas “passagens” em registros de ocorrência policial como autores de crimes, referendados pelos porta-vozes da Polícia Civil. Os delegados de polícia tem o monopólio da fala da instituição policial perante os veículos de comunicação e reiteradamente se referem aos antecedentes dos suspeitos em sede policial.
Correlato a isto, existe todo um discurso jurídico-ideológico, pouquíssimo aplicado, do delegado de polícia como garantidor de direitos. É nessa crença que aparece a súplica pela presença da autoridade policial. Surge então o tão sonhado aplicador garantista da lei, o “delegado de justiça”, aquele cujo ingresso na polícia se dá por uma porta separada dos demais agentes policiais, do qual se exige o diploma de bacharel em direito, replicando toda a fantasia iluminista do uso do direito para contenção do poder punitivo.
Na sua condição de operador jurídico, o delegado de polícia se apresenta nas suas funções ideológicas da tutela de bens jurídicos, como na defesa da vida, da liberdade e, principalmente do patrimônio, ao mesmo tempo em que se constrói como garantidor dos direitos do investigado. Não é por menos que alguns doutrinadores chegam a apontar como função dos delegados o controle dos atos de polícia. Um verdadeiro paradoxo, pois os delegados de polícia presidem a forma jurídica da investigação, o inquérito policial, e dirigem a instituição policial. O que deveria ser controle passa a ser a própria legitimação do ato de polícia, tal qual ocorre nos relatórios finais dos inquéritos outrora denominados “autos de resistência”, utilizados pelo Ministério Público para legitimar a política de extermínio do Estado brasileiro.
Essa aparente contradição revela o que considero mais autoritário neste sistema. Imagina uma ocorrência em que a autoridade policial determina diligências num local e que em razão da atividade policial resulte mortes. Quem irá presidir o inquérito para apurar a existência ou não de crimes de homicídio praticados pelos policiais será, por regra, a mesma autoridade que determinou as diligências. O delegado de polícia atua dentro e fora da atividade policial ao mesmo tempo, numa relação de exclusão inclusiva da norma, aos moldes do hoje tão estudado “estado de exceção”.
Afora os aspectos autoritários para a sociedade da presença de uma autoridade do mundo jurídico no comando das atividades investigativas, a existência do cargo de delegado de polícia também traz a marca do autoritarismo para o interior da instituição policial, na sua relação com os demais trabalhadores da segurança pública.
O delegado de policia já entra mandando na Polícia Civil no primeiro dia de trabalho. Dirigente da polícia investigativa, por força de dispositivo constitucional, ele sobrepõe a sua formação jurídica aos atos de investigação, numa relação hierárquica que coloca o seu cargo muito acima daqueles que exercem as funções típicas da investigação preliminar. Ainda recordo do meu primeiro plantão como delegado no Rio de Janeiro. Ao receber uma carga com dezenas de registros de ocorrência para despachar, precisei da ajuda de um investigador com 20 anos na casa para literalmente me ensinar como proceder. Naquele momento, o delegado/aluno ganhava um salário três vezes maior que o investigador/professor. Ele com 20 anos de experiência e eu com dias sem nenhuma experiência.
Esse contexto de desprezo ao saber policial, que passou a ser ofuscado pelo discurso jurídico, vem sendo um dos grandes responsáveis pelo enfraquecimento das instituições policiais civis e pelo desmonte da polícia técnico-investigativa. As academias de polícia estão sucateadas, uma vez que o saber jurídico, exigido para os dirigentes da instituição, menospreza e por vezes prescinde do conhecimento investigativo, fazendo com que o saber policial seja transmitido por uma rede própria de contatos pessoais e não como um conhecimento indispensável exigido para todos os agentes e autoridades policiais.
Como resultado, a quase totalidade da corporação reduz o crime a um mero conceito jurídico (fato típico, ilícito e culpável), sem entender o fenômeno criminal na sua realidade, como fato social. Isso faz com que os agentes policiais reproduzam o mesmo discurso raso da “criminologia midiática”, na expressão de Eugênio Zaffaroni, que define crimes e criminosos sob o aspecto moral, limitando a sua atuação à simplória e perigosa luta do bem contra o mal.
Quero consignar que nada disso é realizado como um desvio daquilo que deveria ser a esperada atuação democrática do delegado de polícia. Em entrevista à Revista Piauí, afirmei de forma provocativa que “delegado é para soltar!”. Esta prerrogativa da atividade de delegado de polícia nunca foi e nunca será reconhecida enquanto atividade fim, pelo simples fato dos delegados serem operadores jurídicos colocados no interior da polícia. Polícia não é para soltar, policia é para prender!
Mas como não existe nada tão ruim que não possa piorar, alguns delegados de polícia, na busca por uma identidade no mundo real e não no mundo ideal, passaram a se inserir na cultura policial. Ostentando fotos nas redes sociais com armamento militar, vestindo uniformes camuflados, participando de cursos de combate e comandando ações e incursões de enfrentamento bélico nas periferias e favelas, surge o “delegado operacional”. O delegado operacional é aquele que realiza as mesmas funções do “tira”, mas que não abre mão de receber salários superiores e se apresentar como operador do mundo jurídico e dirigente da instituição. Fico impressionado como os agentes policiais valorizam tais delegados mesmo sabendo que ele está ali realizando as mesmas funções e recebendo salário bem superior ao seu.
Os delegados acabam por querer o mundo de Deus sem Deus. Ao mesmo tempo em que dirigem a instituição policial, abandonam as carreiras policiais se colocando como uma carreira fora da polícia, em outro mundo (sem trocadilho), no caso o mundo jurídico. A isso chamam de “carreira híbrida”, metade policial e metade jurídica. Essa simbiose faz lembrar a figura mítica do lobisomem, ou seja, nem homem nem fera, que habita paradoxalmente ambos os mundos sem pertencer a nenhum. Auto banidos da carreira policial, para ingressar no mundo das carreiras jurídicas, os delegados lutam por um local que nunca terão.
Os esforços realizados na aprovação da lei 12.830/13, que dispõe que “as funções de polícia judiciária e das infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica…” e que “o cargo de delegado de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados” foram por água abaixo. O entendimento firmado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), por unanimidade dos seus ministros, no dia 5 de setembro de 2019, é de que a carreira de delegado de polícia não pode ser equiparada às carreiras jurídicas.
Prevaleceu o entendimento do ministro Alexandre de Moraes, seguidos por todos os demais ministros, julgando procedente o pedido da Procuradoria Geral da República para declarar a inconstitucionalidade dos §§ 4º e 5º do art. 106 da Constituição Estadual de Santa Catarina. Na ação, a PGR questiona dispositivo introduzido por meio de emenda à constituição estadual, que passava a considerar o cargo de delegado de Policia Civil como atribuição “essencial à função jurisdicional e à defesa da ordem jurídica”. Segundo a ação proposta, a alteração categorizava a carreira dos delegados de polícia como jurídica e assegurava aos integrantes “independência funcional” e “livre convicção”.
Os delegados de Polícia Civil seguem assim ocupando um lugar indefinido, mas de grande relevância na efetivação das politicas de segurança pública autoritárias em nosso país. Abandonando a carreira policial e não sendo recebidos como carreira jurídica, as autoridades policiais se aproximam cada vez mais do poder político para a sua legitimação perante o sistema penal. Cabe a eles, junto dos oficiais da polícia militar, a efetivação das políticas de segurança definidas pelo poder político. Ainda que estas políticas sejam contrárias aos interesses dos trabalhadores policiais e da própria sociedade. O delegado de polícia, ao contrário do discurso jurídico, é um cargo funcional para a manutenção do modelo autoritário de polícia em nosso país.
Nesse contexto precisamos definir um local para os delegados de polícia, para além desta nefasta função politica de controle social violento. Defendo a tese de que os delegados deverão escolher. Ou retornarão para a carreira policial, podendo aí exercer funções de chefia, ou deverão ser realocados fora da instituição policial para exercerem as funções jurídicas de controle dos atos de polícia. Os possíveis e inúmeros caminhos para isso não cabe neste artigo o debate.
As mudanças estruturais necessárias no nosso sistema de investigação preliminar passam necessariamente pela reestruturação das polícias e das carreiras policiais. Precisamos falar sobre a carreira única! Esse debate não se restringe simplesmente a colocar as policias civis do Brasil no marco da quase totalidade das policiais do mundo. Sim, é importante que policiais da base, os trabalhadores que produzem a investigação, possam ascender ao comando das suas corporações e alcançarem, depois de longos anos de dedicação exclusiva, a condição de dirigentes da policia. Mas não se trata apenas de uma questão corporativa.
O Movimento Policiais Antifascismo entende que uma polícia de carreira única, ciclo completo, desmilitarizada, é ponto de partida fundamental para a construção do policial como trabalhador e da sua consequente participação, com amplos setores da sociedade, para a efetivação de um projeto de segurança pública democrático em nosso país.
(*) Orlando Zaccone é delegado da Policia Civil do Rio de Janeiro e coordenador Nacional do Movimento Policiais Antifascismo.