As pessoas que votarão em Jair Bolsonaro e em seus candidatos a governador se comportam como o carrasco nazista, com total desprezo pela vida humana
Recorro ao passado. Adolf Eichmann, um dos arquitetos da “solução final” — o extermínio de judeus — foi responsável pela logística de envio de milhões de pessoas para campos de concentração, nos quais ele já sabia que elas seriam mortas. Foi preso na Argentina e conduzido a Israel para ser julgado. O julgamento foi um acontecimento que atraiu a atenção de todo o mundo. Hannah Arendt foi uma das pessoas que acompanhou, de forma presencial, todo o julgamento. E fez importantes observações.
A expectativa era de se deparar com um monstro, uma figura cuja aparência física demonstrasse um nazista arrogante, horrendo. Não, não foi que se viu. Eichmann era uma pessoa quieta, com um semblante calmo. Uma pessoa que, pela aparência, não demonstrava ter sido capaz de fazer o que fez. Usando uma expressão atual, muito utilizada pelos bolsonaristas, Eichmann tinha a aparência do típico cidadão de bem.
Adolf Eichmann não se arrependeu do que fez, pelo contrário, sentia orgulho por ter trabalhado com zelo pelo seu país. Para ele, a questão residia em apenas dar o fiel cumprimento às ordens de seus superiores, não importando se isso ocasionaria a morte de milhões de pessoas. Ele era o típico funcionário burocrata, medíocre, cumpridor de ordens. Seu trabalho diário era útil e necessário ao extermínio, embora ele não sujasse as mãos de sangue.
Essa circunstância atroz levou Hannah Arendt a cunhar a expressão “a banalidade do mal”, ou seja, o quanto uma pessoa pode praticar atos destrutivos da vida humana, de maneira cotidiana, sem resultar em remorso algum. A vida humana, cada vez mais desprezada e aniquilada, digamos assim, de forma corriqueira, no varejo.
Chamo a atenção para o que o julgamento de Adolf Eichmann revelou à humanidade, para dizer que, de maneira semelhante, as pessoas que votarão em Jair Bolsonaro e em seus candidatos a governador (notem que nenhum deles pediu desculpas pelo que o presidente fez durante a pandemia), se comportam como Adolf Eichmann, ao demostrar total desprezo pela vida humana, precisamente, pelas milhares de mortes pela COVID, que poderiam ter sido evitadas, se Jair Bolsonaro tivesse agido de maneira diferente.
Os números são estarrecedores: mais de 680 mil mortos pela Covid, sendo que quatro em cada cinco mortes poderiam ter sido evitadas; demora na compra da vacina; desprezo pela vacina da Instituto Butantã; esquema de corrupção, no Ministério da Saúde, na compra da vacina contra a Covid. Todos nós assistimos às cenas em que Jair Bolsonaro imitava pessoas com falta de ar, as frases cruéis de pura indiferença ao sofrimento alheio (“Não sou coveiro“, “E daí?“, “País de maricas” e “Chega de frescura, mimimi. Vai ficar chorando até quando?“), a ofensa a quem perguntava sobre a aquisição de vacinas, ou seja, o menosprezo pela vida e sofrimento humanos. Além do combate sistemático aos esforços legais, médicos e científicos para fazer frente à pandemia. “Toma quem quiser, quem não quiser não toma. Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma tubaína” e “Quando pega Covid-19 num bundão como vocês, a chance de sobreviver é bem menor do que a minha“.
O desrespeito às minorias: indígenas estão sendo, literalmente, exterminados, física e simbolicamente (“Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente como a americana, que exterminou todos os índios”); pretos são difamados a todo momento (“Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem para procriar serve mais”); comunidade LGBTQIA+ é, de forma constante, ameaçada e alvo de ofensas (“Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí” e “O filho começa a ficar assim, meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele”); adversários políticos são considerados inimigos que devem ser exterminados (“Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre“); intolerância religiosa contra os adeptos das religiões de matriz africana, que não são respeitados em suas crenças (“O Estado é cristão e a minoria que for contra que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”; mulheres são ofendidas (“Tenho cinco filhos. Foram quatro homens, aí no quinto dei uma fraquejada e veio uma mulher“), subavaliadas e submetidas a toda sorte de violência, com exemplos evidentes: “Não te estupro porque você não merece”, submissão da esposa ao marido, aumento dos casos de feminicídio e de violência doméstica, assédio moral e sexual (“Não empregaria [homens e mulheres] com o mesmo salário“); o meio ambiente, indispensável para a manutenção da vida em todo o planeta, destruído como nunca; a floresta amazônica chora em chamas, rios contaminados por mercúrio, fruto da ganância motora do garimpo ilegal; cerrado sendo igualmente dizimado; populações ribeirinhas e povos originários sendo forçados a mudar de local.
O Brasil voltou ao mapa da fome, 33 milhões de pessoas sem ter o que comer, o desemprego bate recorde, a informalidade no trabalho grassa. Ameaças constantes contra as instituições brasileiras, o desejo de dar um golpe de estado é latente. Guerra contra a cultura, ao ensino e à ciência, essenciais para o desenvolvimento de uma nação. A lista de crimes e de aberrações é extensa.
Mesmo assim, indiferentes a tudo isto, milhões de pessoas, por ocasião do segundo turno das eleições, votarão nele e nos candidatos por ele apoiados. Para elas não importa o que aconteceu de pior nestes últimos anos quatro anos, no nosso país. Pensei que seria diferente, pensei que essas pessoas se importariam com o outro, que as mortes, o sofrimento e a destruição que vivenciamos seriam motivos, mais do que suficientes, para expulsar Bolsonaro, pelo voto, do poder, primeiro passo para que ele seja responsabilizado criminalmente pelos seus atos vis.
Não há justificativa plausível para votar em Jair Bolsonaro e nos candidatos a governador dos estados, por ele apoiados. A banalidade do mal estará suficientemente demostrada, em cada voto que eles receberem.
Dor, sofrimento, ódio, desprezo pela vida humana. Isso é o que Jair Bolsonaro representa. O Brasil morre. Há razões mais fortes e mais do que suficientes para não votar em Bolsonaro? É óbvio que não.
A situação é bem clara. Não se trata de discutir uma opção política. Se trata de afirmar ou refutar o respeito pela humanidade e tudo o que ela representa de mais sublime.
(*) Adilson Paes de Souza é doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo