A frase dita por uma moradora da favela do Moinho coloca o dedo na ferida de uma cidade que quer expulsar os pobres da região central e torná-los invisíveis

“A gente não tem direito de morar no Centro porque somos pobres?”
Este foi o questionamento que nosso repórter, Paulo Batistella, ouviu da piauiense Naiana Xavier, moradora da Favela do Moinho há 16 anos, durante o segundo dia de nossa cobertura da presença da PM-SP no local. Em algum comentário que li no Instagram da Ponte, uma mulher foi cirúrgica: a classe média e a sociedade em geral não fazem nada nesses casos porque querem que “essa gente” desapareça, torne-se invisível.
A mesma visão higienista emerge quando prefeito e governador celebram a ausência de usuários na região conhecida como Cracolândia. Para onde foram? O que foi feito com eles? Ninguém sabe, o importante é que sumiram com o “problema”, afinal ninguém está interessado realmente nas pessoas, mas no “inconveniente” que elas são para a cidade.
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É mais fácil fazer a limpa do que resolver o problema de fato. Não precisa de esforço mental, afinal não é uma população que faz diferença nas urnas, pensam eles. Governam para agradar os Jardins, Higienópolis, Pinheiros e outros bairros considerados nobres. E quando falo de solucionar o problema, no caso Favela do Moinho, três instâncias têm responsabilidade pela situação: os governos municipal, estadual e federal, que é o dono daquele chão.
Os representantes do Moinho têm dialogado com as autoridades há um bom tempo, mas isso a mídia tradicional não vai te mostrar. O povo ali quer sair daquela situação precária e quem disse isso foram eles próprios. Querem um local melhor, mas a oferta oferecida, até então era “deem suas casas que construíram com seus recursos e vamos oferecer para vocês uma dívida de 30 anos”.
Auxílio-aluguel inferior ao da favela
Para quem quisesse sair antes, um aluguel de R$ 800. Um bastidor: segundo nossos repórteres, o aluguel dentro da própria favela é R$ 900. É ou não é um “sumam daqui” oficial? E, como já disse em outro texto, a polícia sempre envolvida em assuntos que não são de sua alçada. O lugar é para política pública, mas só recebe bomba e bala de borracha que não poupam ninguém. Bebês, crianças, idosos, homens, mulheres, todos são corpos-alvo dessa eterna política pública brasileira: a morte.
Outra coisa que me chamou atenção é como as pessoas saem em defesa do governo federal apenas por simpatizar com o presidente. Como dono do terreno, era possível pressionar para proteger as pessoas antes de a PM sair batendo. Não houve movimentação contundente e oficial, mas abundam as notas oficiais à imprensa que têm tanto valor quanto uma nota de R$ 7. Precisou os moradores começarem a cobrar o presidente Lula, precisou acontecer tudo para que com uma visita do ministro das Cidades, Jader Filho, e um acordo com o governo estadual, para que uma suposta solução (digo suposta pois não há nada registrado em papel, em documento) fosse apresentada.
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As pessoas do Moinho terão para onde ir sem se preocuparem com um financiamento que não se sustentaria com sua renda a longo prazo. Magicamente, surgiu dinheiro para o Estado comprar os imóveis, mas também, veja só você, aumentar o auxílio-aluguel de quem escolher imóveis ainda em construção.
Que melhor exemplo do “14 de maio”, o dia depois da Abolição, temos aí. Tal qual em 1888, o plano era largar as pessoas à própria sorte e, se possível fosse, matá-las para deixar tudo mais branco. O Estado brasileiro mudou sua forma de governo e muda suas cores partidárias de tempos em tempos, mas o modus operandi com pretos e pobres é sempre violência e morte. A diferença é que agora com a democratização do acesso a celulares e a sinal de internet, as pessoas têm publicizado suas vozes, se organizado e resistido.
Ainda que não haja nada escrito em pedra, o Moinho celebrou uma luz do final do túnel, sem, entretanto, confiar na palavra falada. O que fica é a teimosa resistência, o desafio de quem sempre precisou sobreviver.
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.
(“Ainda assim me levanto”, Maya Angelou)
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