Artigo | ‘Extermine Todos os Brutos’: o pesadelo do Brasil Paralelo

Sem fazer concessões à “história alternativa”, série documental do diretor haitiano Raoul Peck traça o caminho que liga a colonização ocidental ao genocídio moderno, de Cristóvão Colombo ao Holocausto

A primeira imagem dá uma introdução ao tom que vem pela frente: um chumaço grande de cabelos compridos sendo arrancados junto com o couro cabeludo por mãos masculinas portando uma faca – um escalpelamento. Mais tarde vamos descobrir que se trata da recriação ficcional um massacre perpetrado por brancos estadunidenses contra uma aldeia do povo Seminole, habitantes originais do território hoje conhecido como Flórida, que estariam abrigando um grupo de negros fugindo da escravidão.

O cartão de visitas escolhido por Raoul Peck (Jovem Marx, Não Sou Seu Negro) para abrir sua série documental (chamada por ele mesmo de “filme”) Extermine Todos os Brutos, disponível a partir deste mês no Brasil em streaming pela HBO Max, diz um tanto sobre o tema e o tom da obra: violenta, sem medir palavras ou imagens, de certa forma uma quase necessidade para se reproduzir com precisão o nível abjeto do horror da escravidão, da colonização, do imperialismo e do genocídio.

A expressão que dá título à série foi retirada de O Coração das Trevas, romance de memórias do polaco Joseph Conrad que recontava o brutal processo de colonização belga do Estado Livre do Congo (hoje República Democrática do Congo), tratado como uma grande fazenda privada do rei Leopoldo II. A frase de Conrad (cujo livro talvez seja mais conhecido por ter sido adaptado para o cinema como Apocalypse Now, trocando o Congo pela Guerra do Vietnã) dá título também a outro livro que inspirou Peck, Exterminate All The Brutes, de Sven Lindqvist. Ao lado de Silencing the Past: Power and the Production of History (Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História), do haitiano Michel-Rolph Trouillot, e An Indigenous Peoples’ History of the United States (Uma História do Povo Indígena dos Estados Unidos), da estadunidense Roxane Dunbar-Ortiz, o livro do sueco Lindqvist forma uma trilogia que orienta o filme e o pensamento de Peck, que coloca os três como co-autores da série.

A premissa da série é que a violência do fascismo e do recente neofascismo – o presidente brasileiro Jair Bolsonaro aparece ainda no primeiro capítulo, com sua notória declaração sobre “matar uns 30 mil” – não são produtos de gênese espontânea de seus próprios povos, mas sim o resultado lógico do processo de dominação e extermínio de populações periféricas, sob a ideologia do supremacismo branco ancorada no desenvolvimento da Europa capitalista.

Frame de ‘Extermine Todos os Brutos’ | Foto: Reprodução

Extermine Todos os Brutos é uma obra densa e radical, com passagens de recriação ficcional onde Josh Hartnett troca sua aura de ex-galã de comédia romântica pelo papel do cruel explorador branco, seja matando mulheres e bebês nativo-americanos ou decepando mãos de congoleses sob domínio belga. Mas também há um tom de didatismo, com Peck parando em certos momentos para delinear pontos importantes, como se estivesse folheando os livros em que baseia o documentário – por exemplo, ao listar as condições sócio-políticas para a realização de um genocídio. A colcha de retalhos bem urdida ainda traz animações para retratar eventos históricos da era pré-fotografia e imagens de arquivo onde a montagem desafia o olhar colonizador dos fotógrafos quase sempre brancos, mostrando um domínio da linguagem que coloca o diretor como um dos principais nomes do cinema político contemporâneo.

Peck inclusive se insere dentro da série (para ele, “a neutralidade não é uma opção”), misturando a história com passagens autobiográficas e por vezes refletindo sobre o próprio processo e necessidade de se fazer a obra. O diretor, que narra com seu sotaque creole os quatro episódios, com em torno de uma hora cada, vai e volta na história, dando atenção ao avanço da ideologia do supremacismo branco, partindo de um possível início da Inquisição Espanhola (ou seja, antes da colonização das Américas) para a mutação do darwinismo social que acreditava que raças “inferiores” estavam fadadas à extinção e que seria uma tarefa piedosa acelerar tal extinção – conectando Colombo ao Holocausto, a Corrida ao Oeste estadunidense ao Lebensraun nazista, e também dedicando um capítulo inteiro para explicar como o militarismo e a desumanizante capacidade de “matar à distância” serviu de motor ao projeto “civilizatório” ocidental.

Ao colocar o colonialismo e imperialismo no centro do debate sobre fascismo e genocídio, Peck consegue traduzir de forma direta e sofisticada um complexo debate acadêmico. Mesmo com suas justificadas imagens de violência (que nos lembra de um dilema cotidiano aqui na Ponte, sobre a necessidade de se mostrar ou não a violência que se quer ver denunciada), que escancaram a perversidade do empreendimento colonial mas também fazem o filme ter classificação indicativa para maiores de 16 anos no Brasil, não seria má ideia ver a série exibida em escolas mundo afora, num contraponto que se mostraria o pesadelo de produtores de falsificações históricas como a produtora Brasil Paralelo e o escritor Leandro Narloch. Mais ainda: apesar de passagens importantes sobre África, América Latina e Ásia, a série se concentra bastante na formação dos Estados Unidos – seria extremamente útil ver-se pipocar por aí diferentes Extermine Todos os Brutos feitos por brasileiros, colombianos, angolanos, argelinos, vietnamitas, paquistaneses refletindo sobre suas realidades locais.

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Ao fim, a questão que mais assombra na obra, o horror, o horror, não são as pilhas de cadáveres ou os corpos mutilados, mas o fato de que “não é conhecimento que nos falta”: como lembra Peck, as populações educadas dos países centrais sabiam bem dos pesadelos perpetrados em Ruanda, na Guatemala, em Auschwitz, na Síria, no Carandiru, no Afeganistão, na Ucrânia. Não é uma questão de ignorância, não nos falta conhecimento mas sim coragem e imaginação moral para sonhar e exigir para nós todos um mundo onde a vida e o potencial humano sejam definitivamente sagrados.

* Amauri Gonzo é editor na Ponte Jornalismo

** Alguns dos temas aqui expostos foram retirados de um painel da unidade de guerrilha cultural Crise Crise Crise realizado no ano passado – assista aqui ao debate na íntegra

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