Artigo | João Pedro e Cláudia Ferreira: a legalização da bala perdida

Sem golpe, sem cabo e soldado, o Poder Judiciário vai botando goela abaixo do país os excludentes de ilicitude que garantem que a polícia continue sendo um mecanismo de terror diário

À esquerda, Cláudia Ferreira, morta após ser arrastada por uma viatura no Rio, à dir. João Pedro, morto ao ter sua casa fuzilada por policiais | Fotos: Reprodução

Em 2014, a cena do corpo de Claudia Ferreira sendo arrastado por uma viatura da PM carioca chocou o país. A moradora do Morro da Congonha, em Madureira, havia sido atingida acidentalmente numa suposta troca de tiros entre a polícia e traficantes.

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Em 2020, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, a tragédia se repetiria. Com sua casa invadida por policiais que supostamente perseguiam criminosos, o menino João Pedro Mattos Pinto, de apenas 14 anos, foi morto com um tiro de fuzil nas costas. O disparo comprovadamente veio da arma de um policial.

Para além da violência, os dois casos têm algo em comum: todos os policiais envolvidos em ambos os assassinatos foram absolvidos sob a tese de que agiam em legítima defesa.

No caso de Claudia, o juiz Alexandre Abrahão Teixeira, do 3º Tribunal do Júri, fundamentou que “os acusados agiram em legítima defesa para repelir a injusta agressão provocada pelos criminosos, incorrendo em erro na execução, atingindo pessoa diversa da pretendida”, justificando que o local do crime ficava “no alto da comunidade, em região densa de mata, com pouca visibilidade.”

Já no processo que julga o assassinato de João Pedro, a juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine entendeu que “os réus no momento do fato encontravam-se no local do crime, em razão de perseguição a elementos armados. (…) Sob esse panorama, a fim de repelir injusta agressão, os policiais atiraram contra o elemento que teoricamente se movimentava em direção ao interior da residência.”

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Ela reconheceu que, apesar da “morte de um adolescente inocente”, era “necessário entender, com apego à racionalidade, que a dinâmica dos fatos (…) não pode ser inserida em um contexto de homicídio doloso por parte dos policiais (…) haja vista a clara ausência de dolo, uma vez que não houve qualquer intenção de matar o adolescente”. Para ela, “é imperioso entender que os policiais, à primeira vista, agiram sob um excludente de ilicitude, a saber: a legítima defesa.”

Antes de se aprofundar no quão problemático e bárbaro tudo isso é, importante entendermos algumas coisas básicas de nossas leis penais.

O Código Penal, em seu artigo 25, prevê que age “em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Ou seja, uma pessoa que esteja sofrendo ou prestes a sofrer uma violência pode agir com violência proporcional para se proteger.

A legítima defesa é uma figura bastante conhecida pelas pessoas em geral. Mas existem outras figuras jurídicas menos conhecidas que são importantes para compreendermos do que se está falando aqui.

Nos artigos 20, 21 e 72, o Código Penal trata dos chamados “erros”. Existe, por exemplo, o “erro sobre a pessoa”: se um atirador tenta acertar alguém, mas acerta outra pessoa, ele responde criminalmente como se tivesse acertado aquela pessoa que ele desejava acertar. Um policial que acerta um civil inocente pensando que aquele se tratava de um criminoso, portanto, responde como se tivesse alvejado o próprio criminoso.

Também existe a “discriminante putativa”, na qual uma pessoa erra ao pensar que está agindo em legítima defesa, quando, na verdade, ela não está. Seria o caso, por exemplo, de um policial que atira contra um cidadão acreditando que este está lhe apontando uma arma, quando, na verdade, tratava-se apenas de um celular. Se o erro for considerado justificável pelo juiz, a pessoa que atirou não é punida.

Outro “erro” que o Código Penal prevê é o “erro na execução”, “quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa”. Nesse caso, a pessoa que atirou responde como se tivesse acertado o seu alvo original. Ou seja, um policial que, ao tentar acertar um criminoso que atirava contra ele, acerta um inocente, responde criminalmente como se tivesse atirado contra o próprio criminoso. Ou melhor, não responde, já que, nesse caso, alguns juízes consideram que ele atirou em legítima defesa, mesmo acertando um inocente.

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O tema acima é profundo e ainda cheio de debates no mundo jurídico. Tentei apenas passar uma visão superficial e bem resumida dele, e compreendo que, para quem está lendo sobre isso pela primeira vez, tudo pode parecer um pouco absurdo. Mas, no cotidiano da violência policial brasileira, nada mais real do que o absurdo.

Como citei acima, o juiz do caso Claudia absolveu os policiais dizendo que eles incorreram “em erro na execução”, pois supostamente estariam se protegendo de traficantes quando a atingiram. Sem citar o “erro” (ao menos nas matérias que a divulgaram), a decisão da juíza do caso João Pedro foi no mesmo sentido ao dizer que os policiais que o mataram estavam repelindo “injusta agressão” e, por isso, agiam sob “legítima defesa”.

Os casos de Claudia e João Pedro foram emblemáticos pois chegaram à grande mídia, mas estão longe de serem casos isolados. A tese de aplicação da “legítima defesa” a policiais que agiram em “erro na execução” (também chamado de “aberratio ictus” em latim) já foi usada para absolver outros policiais que mataram e feriram inocentes Brasil afora.

Em 2012, na cidade de Manaus, policiais militares perseguiam suposto bandido pelas ruas em troca de tiros. Uma moradora do bairro tentou se refugiar na própria casa em vão. Foi morta atingida por uma bala dos policiais que atiravam a esmo. O criminoso adentraria na casa da vítima fatal, onde acabaria morto ao tentar fazer outro familiar de refém.

O juiz da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Manaus absolveu sumariamente o PM responsável pela morte da mulher justificando que, em uma “ação de bravura”, ele agiu em “legítima defesa de terceiro”. Em 2ª instância, a absolvição se confirmou: “o fato do acusado, para proteger sua vida, ter atingido com um disparo uma jovem inocente, caracteriza hipótese de aberratio ictus, não afastando a excludente de ilicitude da legítima defesa”.1

Em São Paulo, um PM em serviço recebeu o comunicado de que uma farmácia da região havia sido roubada por dois assaltantes em uma moto. De um posto de gasolina, o PM supostamente avistou os dois suspeitos portando uma arma e tentou atingi-los. Em um local de “intenso movimento de carros e pessoas”, seu disparo ricocheteou e acertou uma criança, que acabou morrendo. “Meu Deus, o que eu fiz?”, teria dito o PM quando viu a vítima no chão, segundo testemunhas.

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A absolvição em 1 ª instância se repetiu com o desembargador-relator Lauro Mens de Mello e a tese de “erro na execução”: “todas as pessoas ouvidas confirmam que o policial quis atingir dois sujeitos em uma motocicleta (…). Isto já basta para se reconhecer a legítima defesa, de modo que, ainda que atingida a criança, (…) aplica-se a legítima defesa, já que são consideradas as características e peculiaridades de quem se quis atingir e não quem efetivamente foi atingido. (…) não houve qualquer intenção do policial de ceifar a vida da criança ou ilicitude, pois apenas se buscou atingir criminosos que estavam, ao que tudo indica, armados (…)”.2

Em Campo Grande, no MS, a PM foi acionada para uma ocorrência em frente a uma choperia. Ao chegar no local, um PM à paisana já estava com a situação sob controle e, de arma em punho e se identificando como policial, se aproximou da viatura. Assustado, o PM da viatura desferiu 6 tiros, atingindo o policial à paisana e uma vítima civil que nada tinha a ver com a situação. Ambos ficaram gravemente feridos.

Mas o desembargador-relator Carlos Eduardo Contar confirmou a absolvição do PM atirador sob o argumento de que ele agiu em “legítima defesa putativa”, ou seja, considerou razoável que o PM tenha se sentido em risco e efetuado 6 disparos contra a vítima que, a 3 metros de distância, se identificou como outro PM. Quanto à vítima civil, o PM também foi absolvido sob a tese de “aberratio ictus”. Para o desembargador, ainda que “a abordagem poderia ter sido procedida de uma melhor forma”, não houve nenhum tipo de excesso doloso por parte do policial atirador.3

A questão fica ainda mais assustadora quando percebemos que tais teses também têm sido aplicadas nos tribunais militares, onde os PMs são julgados por seus pares. No Rio Grande do Sul, quatro policiais militares foram absolvidos após, em 2016, em suposta perseguição a veículo roubado, alvejarem por três vezes o carro de uma família que passava pelo local. Um dos tiros acertou a cabeça de uma criança de apenas 7 anos, que ficou gravemente ferida por um mês na UTI.

Para o Desembargador-Militar Amilcar Fagundes Freitas Macedo, que relatou o caso, os policiais “agiram ao abrigo da legítima defesa (…) diante do tiroteio iniciado pelos criminosos durante a fuga, de sorte que não houve excesso na conduta”. Desta forma, o desembargador-militar aplicou a tese de “erro de tipo acidental na execução” sob a justificativa de que “era tarde da noite e que a rua estava deserta”. E ainda completou: “atingindo diretamente o agressor ou terceiro alheio à agressão, do ponto de vista penal, torna-se absolutamente irrelevante”.4

Em todos os casos, salta aos olhos o total desprezo com que são tratadas as vidas de civis inocentes. Na racionalidade dos juízes, estas vítimas são um efeito colateral aceitável, quase que um mal necessário para salvaguardar as “ações de bravura” de policiais, como disse um dos juízes citados.

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Impressiona como cada uma dessas decisões mal dedica um parágrafo para analisar se a conduta dos policiais foi razoável, proporcional, cuidadosa e profissional. Aliás, o que observamos é que, nestes casos, juízes e desembargadores sequer levaram em conta que os acusados eram profissionais que, teoricamente, possuem treinamento e preparo acima do cidadão comum para lidar com estas situações da maneira mais razoável possível.

Junte-se a isso outro problema brasileiro: segundo pesquisas da Defensoria do RJ, do NEV-USP e do juiz Luís Valois sobre casos de tráfico de drogas, cerca de 70% de condenações ou prisões em flagrante se dão exclusivamente pelo depoimento de policiais militares. No cotidiano forense brasileiro, a versão apresentada pelos policiais sobre qualquer ocorrência costuma receber o carimbo de “verdade incontestável” por juízes e promotores.

Com isto, as decisões judiciais passam um recado em alto e bom som para todos os policiais que atuam nas ruas do país: ajam como bem entenderem, atirem primeiro e perguntem depois, disparem o máximo de tiros que puderem, pois sempre haverá uma tese de excludente de ilicitude pronta para referendar qualquer versão policial que justifique a morte de inocentes.

É um verdadeiro salvo-conduto que o Judiciário dá aos policiais para atuarem sem o mínimo de dever de cuidado, prudência, razoabilidade e proporcionalidade que a profissão deveria exigir. Não é à toa que chegamos a uma situação em que mais de 6 mil brasileiros são mortos todos os anos por policiais.

E então percebemos que, ao contrário do que a famosa frase diz, o problema não é exatamente “o guarda da esquina”. Porque o guarda da esquina só age pois está amparado por uma longa corrente na qual o delegado endossa a ocorrência no inquérito policial e os juízes e desembargadores criam um arcabouço legal que o protege nos processos criminais.

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Poucos anos atrás nos chocamos com a proposta de Sérgio Moro de criar uma nova excludente de ilicitude para quem agisse por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.  Era uma antiga promessa eleitoral de Bolsonaro, que já havia dito em comício: “Quero dizer aos policiais militares que estão aqui, hoje temos um governo que também acredita e valoriza vocês. O governo, com um novo parlamento, vai conseguir o excludente de ilicitude para que vocês possam trabalhar”.

Na prática, sem golpe, sem cabo e soldado, sem jipe, o Poder Judiciário, pelas canetas de desembargadores e juízes que pouco se importam com o sangue que sai delas, vai botando goela abaixo do país os excludentes de ilicitude que garantem que a polícia continue sendo um mecanismo de terror diário para as comunidades mais pobres do país, criando uma verdadeira legalização da bala perdida.

(*) Almir Felitte é mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP). Atualmente é advogado e academicamente atua nos seguintes temas: sociologia do direito, instituições policiais, segurança pública, direitos humanos e militarismo

  1. Apelação Criminal Nº 0229101-25.2014.8.04.0001 – TJAM ↩︎
  2. Apelação Criminal Nº 0295473-83.2010.8.26.0000 – TJSP ↩︎
  3. Apelação Criminal Nº 0004677-94.2022.8.12.0001 – TJMS ↩︎
  4. Apelação Criminal Nº 0070646-25.2019.9.21.0002 – TJMRS ↩︎

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