Para professora do IFRJ Jaqueline Gomes de Jesus, episódios de transfobia como os vistos recentemente no programa de TV mostram que pessoas cis precisam ‘estar abertas a serem educadas, e não apenas informadas’
O fato de vivermos na Sociedade do Conhecimento não significa que todas as pessoas, mesmo as mais conectadas, acessam informações qualificadas sobre quaisquer temas. Diferentes comportamentos descuidados de exposição ao vírus durante esta pandemia da Covid-19 e a disseminação acrítica de fake news evidenciam a dimensão desse problema.
Quando a temática é gênero, ou mais especificamente as vidas trans, os episódios do atual Big Brother Brasil, relativos ao uso jocoso de maquiagem e concepções errôneas acerca das identidades travestis, demonstram o que sempre reiteramos: educação para a valorização da diversidade é um processo continuado, e não se resolve apenas com convivência ou assistindo vídeos e palestras.
Os meios de comunicação, maiores educadores do nosso tempo, especialmente pelos recentes recursos da internet, são historicamente contumazes em reproduzir estereótipos que desumanizam pessoas travestis e trans. As notícias e programas ficcionais veiculados na mídia participam da naturalização da transfobia, por meio de práticas, estudadas em profundidade1, tais como: tratamento das pessoas trans, em especial as travestis, como objetos, reduzindo-as à condição de mercadoria; reforço de uma visão restrita, que transita entre a patologização e a exotificação; emprego do tratamento masculino para pessoas que se identificam de forma feminina, e vice versa.
Eles são as principais fontes de informação para a maioria da população. Não me espanta, portanto, que mesmo com o avanço na visibilidade, permaneça um interesse perverso nas pessoas trans unicamente enquanto “assunto interessante”, com pouco aprofundamento acerca da estrutura social machista e genitalizante que garante a contínua desigualdade entre as identidades de gênero (cisgêneros continuam no lugar privilegiado de se considerarem sujeitos universais, ao passo em que particularizam e permitem que pessoas trans continuem sendo oprimidas), sem maiores preocupações no empoderamento concreto ou em reconhecerem nosso protagonismo, saberes e afetos.
Aliados cis abrem caminhos ante a esse cenário espinhoso, mesmo que com limitações. Lumena Aleluia, ao reconhecer a agressão introjetada contra travestis, mulheres trans e gays afeminados na brincadeira dos homens cis, que reproduziam um aprendizado infantil acerca dos usos da maquiagem e apetrechos considerados femininos em nossa cultura, afetou-se e reagiu condignamente, ao apontar que muitas de nós somos ridicularizadas ou mesmo mortas por sermos quem somos, enquanto os homens cis se divertem e não são importunados.
Mesmo não sabendo explicar em detalhes o que estava errado, pois o problema não foi o uso em si da maquiagem, mas a mímese de gestos tidos como afeminados ao usá-la, Lumena compreendeu a natureza recreativa da transfobia, a qual é ensinada a todos desde a infância, e a denunciou: os homens cis que no carnaval brincam de “ser mulher”, associando a estereótipos de feminilidade, e no resto do ano ridicularizam ou estimulam a morte no país que mais registra assassinatos de pessoas trans no mundo, principalmente das travestis e mulheres trans (o Brasil há décadas é o país que registra o maior número de transfeminicícios).
O que muitos interpretam superficialmente como uma “proibição da brincadeira”, no fundo é um alerta contra a transformação das vidas das travestis, mulheres trans e homens afeminados em piada, e portanto “menos humana”, descartável.
Marcadores físicos de gênero, como a aparência, são muito importantes tanto no discurso social quando na construção das identidades. Ser travesti não é uma fantasia, tampouco uma expressão artística, com fins de entretenimento.
Nesse sentido, quando Karol Conká usa o termo “travesti” no masculino e confunde travestis com drag queens, algo ainda comum para a maioria da população, mesmo entre pessoas cis que convivem com pessoas trans, fica patente a falta de aprofundamento em nossa realidade, um descrédito do posicionamento reiteradamente feminino das travestis, ao mesmo tempo em que explica o fascínio dessas mesmas pessoas, na cultura brasileira contemporânea, pelas falas e expressões de drag queens, em detrimento do que a população trans tem contribuído intelectualmente e artisticamente, sem o devido reconhecimento.
Pessoas trans não se parecem trans, elas são. A ideia de passabilidade não é trans, ela é cis. Os meios de comunicação, como expressão do pensamento social, repetem representações e linguagem de escárnio que naturalizam violações, mesmo no mundo altamente virtualizado em que vivemos.
A única saída para esse problema das pessoas cis é reconhecerem os próprios estereótipos acerca das pessoas trans e travestis e nos ouvir, ler-nos, permitirem-se conhecer nossas ideias e histórias, não de maneira superficial, mas permanente e valorizada: dentro das organizações e pelos veículos de comunicação; estarem abertas a serem educadas, e não apenas informadas.
Jaqueline Gomes de Jesus é professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
1 JESUS, Jaqueline G. Desejo e abjeção no discurso midiático: uma análise psicossocial e semiótica. In: A. R. R. Geisler (Org.), Protagonismo trans*: política, direito e saúde na perspectiva da integralidade (pp. 55-72). Niterói: Alternativa, 2015.
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