Artigo | Meu corpo político quer viver em paz

Dois anos depois de anunciar sua transição aqui na Ponte, o jornalista e homem trans Caê Vasconcelos conta como sua vida foi transformada depois da mastectomia

Caê Vasconcelos, jornalista e homem trans | Foto: Arquivo pessoal

Há quase dois anos, escrevi um texto aqui na Ponte contando que havia me entendido um cara trans. Contei como foi o processo de autoaceitação que eu precisei passar e como tudo começou quando eu escrevia o meu TCC de jornalismo e, depois, se fortaleceu quando eu assisti ao documentário “Bixa Travesty“, da Linn da Quebrada. 

De lá pra cá, muita coisa mudou. Uma delas foi justamente o motivo pelo qual o documentário da Linn me tocou tão profundamente. Naquele dezembro de 2019, quando assisti ao doc, eu não me via fazendo a terapia hormonal ou qualquer cirurgia. Mas a sociedade cobra, ainda hoje, que haja uma linha muito bem determinada para ser uma pessoa trans. Por isso, antes de continuar essa leitura, gostaria de demarcar: não são as nossas cirurgias ou harmonizações que nos fazem ser pessoas trans. A transição, ou percebimento, é muito mais interna do que externa.

Depois de refletir muito sobre a minha transição, eu vi que fazia sentido fazer o uso do hormônio e procurei um endocrinologista, especialidade médica que cuida dessa parte, em junho de 2020. Aí comecei o acompanhamento trimestral, passando com uma equipe multidisciplinar, que me ajuda a manter a saúde boa enquanto faço a hormonização. Eu optei por fazer tudo pela rede privada de saúde, mas pelo SUS também é possível fazer o acompanhamento (que varia de cidade para cidade).

Eu não acredito que exista um tipo de corpo masculino e um tipo de corpo feminino. Existem corpos, no plural. Cada pessoa, seja cis ou trans, tem a sua singularidade e ela precisa ser respeitada. Por isso cobranças como essas, de que nós, pessoas trans, precisamos fazer algo em nossas corpos, são uma visão transfóbica. Eu, particularmente, nunca enxerguei meu corpo como um corpo errado. Meu corpo jamais será um corpo cisgênero. Meu corpo é e sempre será um corpo trans. Um dos tipos de corpos masculinos.

Com isso em mente, comecei a perceber o que era a tal da disforia (quando a gente não se sente confortável com o nosso corpo) e o que era a cisgeneridade me dizendo que eu, como homem, não podia ter. Aí comecei a pensar sobre a mastectomia, que é a cirurgia de retirada das mamas. Quando olhei para a minha vida até o momento que contei para todas as pessoas, eu já tinha 28 anos (agora estou perto de fazer 31). E, durante toda a minha vida, eu não queria que meus peitos tivessem sequer nascido. Mas nasceram e ficaram comigo por 30 longos anos.

Decidir fazer a cirurgia para me sentir ainda melhor comigo foi uma das melhores coisas que pude fazer por mim. Mas esse texto não é um texto para convencer ninguém a fazer a mastectomia, escrevo para mostrar que as cirurgias em corpos transvestigêneres são muito mais do que uma questão estética. É um reencontro profundo com a gente mesmo. E a transição de uma pessoa não começa com a primeira dose de hormônio e termina na cirurgia. Essas datas são importantes, mas a transição é constante e eterna.

Como a fila do SUS é grande para esse procedimento, e eu já tinha esperado 30 anos, decidi, novamente, fazer pela rede privada. Mas é uma cirurgia bem cara e eu não teria condições financeiras de bancar. Mesmo trabalhando, tendo um reconhecimento no jornalismo, sou um cara periférico, que hoje mora no centro de São Paulo e paga aluguel. Aí uma grande amiga me disse: faz uma vaquinha online. Fiquei bastante inseguro de fazer isso porque achei que ninguém iria doar. Fui, muito felizmente, surpreendido e em três meses consegui arrecadar os honorários médicos para operar com uma das maiores médicas especializadas nesse tipo de cirurgia, a Dra. Daniela Cornelio. Daí, com a grana arrecadada, marquei a cirurgia. Operei em 13 de agosto de 2021.

Tive todo o apoio e afeto da minha família no pós-operatório, que não foi nada fácil. Na verdade, é horrível. Nos primeiros sete dias eu pensava sem parar: “por que eu fiz isso comigo?“. Não conseguia dormir, tomar banho, comer, ter uma hora sem a agonia absurda do colete comprimindo meu peito. 

Fiquei com raiva de todos os meninos que haviam passado pelo procedimento e não falado a real: é um sonho realizado, mas é horrível. Chorei de raiva, de agonia, de alegria. Então decidi, começar a fazer alguns conteúdos no meu Instagram sobre a desromantização da mastectomia. E muitas pessoas chegaram até mim agradecendo porque elas também se sentiam assim.

Quando falamos em corpos transmasculinos falamos ainda mais de invisibilização. Quantos homens trans ou pessoas transmasculinas vocês conhecem? Cabem em uma mão, né? Mas somos muitos. Só falta sermos vistos, termos visibilidade. Com a minha transição, entendi que era importante assumir esse lugar de luta. Se eu avançar, quero trazer o máximo de pessoas trans comigo. Sem a coletividade não há luta.

Aí, com todo o apoio e suporte da minha rede de afeto, as semanas seguintes foram melhores. Não senti dor durante todo o processo de recuperação. A partir dali, sinto que realmente comecei a viver a partir daquela data. Comecei a ter primeiros momentos de novo, assim como na infância. O primeiro banho, o primeiro passeio na rua, a primeira ida à piscina, a primeira vez sem camiseta na rua, a primeira ida à praia. Em seis meses, fiz questão de vivenciar tudo o que a cisgeneridade me tirou nos meus 30 anos.

Até hoje não sei explicar a sensação que foi tirar os curativos e ver o resultado. Fiquei bem preocupado porque eu estava completamente torto, quase corcunda por ter passado a vida inteira tentando esconder meus peitos. Achei que não ficaria reto novamente. Mas rolou. Seis meses depois, consigo estufar o peito e andar reto, com mais confiança, mais brilho no olhar, muito mais amor próprio.

E como demorou pra isso acontecer. 30 anos, uma vida inteira. Decidi escrever esse texto depois de ir à praia pela primeira vez e ficar sem camiseta na frente de muitas pessoas. Sentir a brisa do mar, o sol, a água do mar, a areia. É um sentimento inexplicável. Deve ser o sentimento que a gente sente quando é criança e vai pela primeira vez à praia, mas aí a gente cresce e esquece. Eu tive esse privilégio de ter minha segunda primeira vez. Sendo eu mesmo.

Claro que senti medo dos olhares e possíveis comentários. Mas decidi enfrentar esse medo. O medo me bloqueou por tantos anos, me impedindo de ser quem sou. Se eu esperasse ir embora, perderia a minha vida. Por isso a transição me salvou, me deu um motivo para viver: ser feliz, sendo eu.

Ajude a Ponte!

Neste Dia Nacional de Visibilidade Trans, eu quero falar diretamente com as pessoas transvestigêneres: vamos ser felizes. Vamos escolher a gente, antes de qualquer outra coisa. Vamos ser visíveis em nossas individualidades, mas lembrar que a luta precisa ser coletiva. Vamos nos apoiar e nos acolher. 

Às pessoas cis, eu peço que lutem por nós. Apoiem, amem, contratem, escutem, assistam pessoas transvestigêneres. Quando verem uma transfobia acontecendo, se levantem. Usem os seus privilégios para nos ajudar a destruir esse cis-tema que nos violenta diariamente.

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