Viés pró-Israel de grupo de imprensa é criticado nas redes e nas ruas
Na quinta-feira (29/2), militares israelenses abriram fogo contra civis palestinos que aguardavam ajuda humanitária na Faixa de Gaza deixando ao menos 112 mortos. O que o mundo inteiro noticiou como um massacre, o G1 descreveu com uma palavra de propaganda de Sessão da Tarde. Segundo o portal de notícias da família Marinho, os palestinos famintos teriam “morrido” como resultado de uma “confusão”.
O jornal O Globo, do mesmo grupo empresarial, conseguiu pintar um retrato ainda mais insensível da situação. “Dezenas morrem durante entrega de ajuda caótica em Gaza em meio a disparos de Israel” cravou, em um título que parece culpar pelas mortes mais a ajuda “caótica” do que os próprios atiradores.
A tentativa de isentar Israel da responsabilidade pelo banho de sangue repercutiu mal nas redes sociais. A insatisfação foi tanta que, após a reclamação de diversos usuários, a plataforma X chegou a adicionar uma nota de contexto à publicação original. O recurso é utilizado como forma de combater a disseminação de conteúdos falsos ou enganosos.
“Os palestinos não simplesmente ‘morreram’, mas foram executados pelas Forças de Defesa de Israel. Uma fonte militar de Israel confirmou o ocorrido, mencionando que os militares se sentiram ameaçados quando uma multidão cercou caminhões de ajuda humanitária” afirma o texto da nota, que traz ainda links de veículos internacionais atestando as informações.
A comunicadora e escritora Lana de Holanda comparou a abordagem dada ao fato pelo G1 com a do jornal espanhol El País. Na chamada da publicação europeia, se lê que o exército de Israel disparou “contra uma multidão que recebia comida”, em uma “agressão com mais de 100 mortos”.
“É a mesma notícia. Reparem na diferença entre o El País (da Espanha) e o grupo globo (Brasil). Repito: é a mesma notícia. Mas com a Globo parece que os palestinos se mataram pisoteados, não que foi Israel que os fuzilou. O jornalismo brasileiro é cúmplice descarado de genocídio” comenta Lana.
Ela recorda que apesar da existência de diversos registros feitos por jornalistas árabes do massacre, a Globo decidiu mostrar apenas as filmagens editadas pelas forças israelenses:
“É um jornalismo que se diz imparcial, mas que é somente racista” avalia.
Ato na porta da emissora
O silenciamento midiático dos palestinos já havia merecido o repúdio de um grupo manifestantes que, quatro dias antes (25), se reuniu em frente à Central de Jornalismo da Rede Globo, no bairro do Jardim Botânico, zona sul do Rio.
“A Rede Globo, em mais de 140 dias, não chamou um representante palestino pra falar, não deu espaço”, denunciou o jovem ativista palestino brasileiro Marcos Feres, um dos presentes à manifestação, organizada pelo Coletivo Árabes e Judeus pela Paz.
Este é um ponto que tem sido recorrentemente levantado pela Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), da qual Feres é diretor de comunicação. Em sua conta no X, a entidade chama atenção para o fato de o grupo empresarial preferir convidar até evangélicos fundamentalistas “do que a representação palestina, para falar sobre a Palestina”.
O post cita como exemplo “a turma do Valadão da Igreja Lagoinha”, fazendo referência a uma entrevista sobre o tema concedida à Globo News pelo pastor Felippe Valadão. Líder da agremiação neopentecostal no Rio de Janeiro, Valadão é alvo de uma ação do Ministério Público por incitar o ódio a religiões de matriz africana.
A publicação da Fepal foi feita em meio à revolta causada após o comentarista da Globo News Jorge Pontual haver defendido o ataque de Israel a ambulâncias que partiam do hospital de Al-Shifah, ocorrido em novembro do ano passado.
Na ocasião, o jornalista, correspondente do canal em Nova York, afirmou que “atacar terroristas do Hamas é um direito que Israel tem. Se eles estavam em uma ambulância, infelizmente era isso que Israel tinha que fazer: alvejar esses seus inimigos”.
Outro nome do telejornalismo global acusado de apologia ao assassinato em massa de palestinos foi o de Renata Lo Prete, apresentadora do Jornal da Globo.
Na edição de 02 de novembro de 2023 do jornalístico noturno, a âncora atribuiu o alto número de óbitos de crianças em Gaza ao que chamou de “fator estrutural” causado pela “demografia” da região: de acordo com os dados apresentados, 40% da população local tem até 14 anos, o que explicaria que esse fosse o percentual de mortos nessa faixa etária desde 7 de outubro..
A fala da jornalista foi considerada eugenista pela FEPAL: “Esse argumento é usado por sionistas para negar o genocídio e a limpeza étnica. ‘Se houve limpeza étnica, por que a população cresceu?’”, ataca a federação.
Crise Lula-Israel
O viés pró-Israel da dita “grande mídia” brasileira ficou mais uma vez evidente após recente fala do presidente Lula, comparando o genocídio em Gaza a atos de Hitler.
A analogia foi tratada como uma ofensa gravíssima “ao povo judeu” por seus jornalistas e convidados, que repetidas vezes a apontaram como o possível estopim de uma “crise diplomática” que isolaria o Brasil no cenário mundial.
Em nenhum momento de tais “análises”, foi lembrado que esse tipo de paralelo – entre a violência da ocupação colonial judaica na Palestina e a barbárie do nazismo – nada tem de novo, já tendo sido traçado, inclusive, por renomados intelectuais judeus, como a filósofa Hannah Arendt e até mesmo Albert Einstein.
Em vez disso, optou-se por dar desproporcional relevância à resposta das autoridades israelenses, expressas por meio de discursos como o do primeiro ministro Benjamin Netanyahu, que comparou o presidente brasileiro ao “mais virulento antissemita” e o acusou de desonrar “a memória de seis milhões de judeus assassinados pelos nazismo”.
“É uma frase muito grave a do presidente do Brasil, que vai causar muito desconforto não só para o governo de Israel, mas para o público israelense, para as comunidade judaicas no mundo e para outros governos democráticos, que vão condenar frase do presidente brasileiro”, previu, acrescentando que espera reações dos Estados Unidos e de países da Europa.
A posição do primeiro ministro foi ecoada pela Stand With Us (“Fique ao Nosso Lado”, na tradução que não fazem), organização judaica estadunidense dedicada a promover a deslegitimação do movimento de solidariedade ao povo palestino ao redor do planeta:
“Criar falsos paralelos entre Israel e o nazismo é um dos mais vis tópicos contemporâneos do discurso antissemita no mundo inteiro, e não é à toa: nenhuma outra comparação poderia ser mais cruel e mais ofensiva para os judeus” afirmou André Lajst, presidente da sucursal brasileira da entidade, em nota que ainda acusa Lula de “banalizar o Holocausto”.
O ultraje de Netanyahu contrastou com a placidez de seu governo em relação ao seu colega de extrema direita Jair Bolsonaro, quando este, então presidente do Brasil, disse que o Holocausto poderia ser perdoado. Tampouco foi feita qualquer queixa de banalização quando o senador Flávio Bolsonaro comparou o martírio dos judeus durante a Segunda Guerra com as prisões de 8 de janeiro.
A previsão de Israel e seus lobistas não se confirmou. Apesar dos clamores nesse sentido de Netanyahu e do presidente do país, Isaac Herzog, nenhum outro chefe de Estado condenou a declaração de Lula. No encontro que reuniu chanceleres do G20 no Rio de Janeiro, o assunto sequer foi debatido, só tendo sido abordado, timidamente, por uma ou outra delegação, quando repórteres brasileiros provocavam.
Na visão de Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC de São Paulo, a noção de que haveria algo de excepcional no Holocausto é difundida por Israel como uma forma de justificar os seus crimes:
“A denúncia de Benjamin Netanyahu de que Lula foi antissemita ao comparar o genocídio em Gaza ao Holocausto nazista e a rejeição israelense do direito internacional – como os julgamentos em curso na Corte Internacional de Justiça e no Tribunal Penal Internacional –, que entende o que está acontecendo em Gaza como genocídio, demonstra o poder político e retórico que a excepcionalização do Holocausto traz para o presente” pontua o pesquisador, em artigo publicado pelo site The Intercept Brasil, a respeito da controvérsia.
Apagamento e Higienização
Huberman reconhece as singularidades do Holocausto, mas destaca que a ideia de que este seria algo incomparável e sem precedentes é racista e serve a uma série de apagamentos, dentre eles, o da Nakba, a destruição da Palestina histórica pelo Estado de Israel:
“A Nakba não possui a mesma importância que o Holocausto judeu para nós, brasileiros, pois somos educados dentro do sistema ocidental e eurocêntrico” observa o estudioso, para quem “a mídia brasileira comete o mesmo memoricídio”.
A importância da mídia na viabilização do extermínio palestino também é sublinhada pela Fepal. Ela lembra que o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, em 2003, condenou o cofundador da Hutu Power Rádio, Ferdinand Nahimana, o diretor executivo Jean-Bosco Barayagwiza e o fundador e editor do jornal Kangura, Hassan Ngeze, por incitarem a execução de mais de 1 milhão de pessoas da etnia tutsi.
E questiona: “Não está na hora dos editores e executivos do Grupo Globo darem explicações sobre a desumanização dos palestinos, a propaganda de guerra, a desinformação e a higienização do genocídio palestino?”.