O sistema educacional e as mídias nunca deixaram de ser burguesas e capitalistas
Parece uma comédia de erros com resultados trágicos. Em nota, na qual se defende das acusações do colunista Ancelmo Gois, do Globo, por supostamente ter censurado vídeos considerados “esquerdistas”, o MEC (Ministério da Educação) acusa o jornalista de, pasmem, ser treinado em “marxismo e leninismo”. A delirante comunicação, publicada, na noite de quarta-feira(30) na página oficial do MEC no Facebook , demonstra a investida do pensamento conspiratório ao novo governo ao propagar um absurdo perigo comunista, criando um inimigo imaginário como forma de se legitimar.
A nota divulgada pelo MEC é de um amadorismo quase inacreditável. Escrita em caixa alta e com erros de grafia, a comunicação tenta esclarecer a retirada de vídeos da TV INES, do INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos) – sob a tutela do Ministério da Educação. Informa que, de fato, produções que abordavam a biografia de personagens como Marx, Engels e Nietzsche foram retiradas do ar, mas que tal “censura” em nada tem a ver com a gestão do ministro Ricardo Vélez Rodriguez. Esclarece a nota que os vídeos foram retirados do ar em abril e novembro de 2018, tendo o novo ministro assumido o cargo em janeiro de 2019.
O desmentido do MEC, porém, é ofuscado no último parágrafo da nota. Ao final do texto, associa o colunista Ancelmo Gois ao socialismo soviético, sugerindo que o jornalista tenha tido ligações com a extinta agência de espionagem KGB após ter sido treinado em, ipsis litteris, “marxismo e leninismo” na década de 1960.
A rocambolesca nota deve ser vista mais do que uma piada de mau gosto. Revela o quão longe chegou o novo governo e seu Ministério da Educação em seu anacrônico delírio conspiratório.
Para começar, o próprio ministro da Educação, Ricardo Velez, é um exemplo acabado de anacronismo e paranoia. Entusiasta do movimento Escola sem Partido, o ministro, Diante de uma pasta com pautas tão sérias como a formação dos professores e a falta de infraestrutura, Velez prefere localizar sua luta no combate à influência do educador Paulo Freire e ao que chama de “entulho marxista”.
Nesse processo visando varrer o viés ideológico da educação brasileira, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), maior meio de ingresso ao ensino superior do país, vem sofrendo constantes ataques por parte do novo governo. A última proposta é a vistoria das provas pelo presidente.
Com o Enem, novo governo agiu rápido. Exonerou a presidente do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), Maria Inês Fini, no dia 14. No lugar de Maria Inês, foi nomeado o engenheiro Marcus Vinícius Rodrigues. Ligado aos militares, Rodrigues já avisou com todas as letras que “o presidente Bolsonaro é o dono do Enem”
Ao evocar uma suposta doutrinação, o novo governo recorre à ideia de marxismo cultural, conceito difundido pela direita brasileira amparado pela “produção filosófica” do pensador contemporâneo (ironia) Olavo de Carvalho. De modo geral, marxismo cultural remete a uma fantasiosa conspiração. Na insensatez olaviana, comunistas improváveis em 2018 estariam infiltrados nas escolas, na mídia, nas universidades. Doutrinadores ferozes, tais soldados vermelhos estariam preparando terreno para a revolução comunista a partir da manipulação ideológica, da destruição da família e dos valores tradicionais.
Assustador, não? Acontece que tais concepções são pura falácia. Uma conspiração fantasiosa gerada por uma leitura equivocada das obras do pensador Antonio Gramsci e dos teóricos da Escola Frankfurt. De modo bem simplificado, Gramsci e os baluartes de Frankfurt se dedicaram em entender como instituições como as escolas e a mídia contribuíam para a legitimação do capitalismo na sociedade ocidental.
A grande ironia e onde reside o desatino dos marxistas culturais está em enxergar uma conspiração comunista justamente em instituições que, para Gramsci e para frankfurtianos, possibilitam a perpetuação do capitalismo e não seu enfraquecimento. Basta pensar: quando o sistema educacional e as mídias deixaram de ser burguesas e capitalistas? A resposta é óbvia. Nunca deixaram de ser.
A pergunta que fica é entender como o medo gerado por uma teoria tão rasa quanto a do marxismo cultural ganhou espaço a ponto de passar a interferir nas pautas do Ministério da Educação e no maior mecanismo de inserção no ensino universitário do Brasil. A resposta reside exatamente na pergunta: o medo. O pânico moral causado por um inimigo inexistente.
No delírio, os esquerdistas e os movimentos sociais são a própria representação do perigo. Sob o risco de desmoronamento do mundo como conhecemos, aqueles que representam a ameaça devem ser considerados inimigos e eliminados. É provável que foi munido dessa ânsia em eliminar seu opositor que Bolsonaro, sem o menor pudor, se mostrou impelido a “varrer do mapa os bandidos vermelhos”.
A fabricação de inimigos é velha conhecida de governos autoritários. A filósofa Hannah Arendt estudou a questão quando analisou a origem de governos totalitários e em especial o Estado nazista. Arendt percebeu que a concepção de um inimigo objetivo não só legitima o próprio autoritarismo, mas forja, pelo medo e pelo ódio, um sentimento de coesão e de pertencimento. Assim, assustados com uma fantasia absurda, para o governo Bolsonaro, as escolas passam a ser vistas como antros de doutrinação a crianças indefesas. Professores são alçados à condição de inimigos em potencial.
Nesse cenário, a educação não perde seu viés ideológico. Ao contrário, assume uma proposta obscurantista, em que qualquer menção à diversidade de pensamento, erroneamente travestida de inimigo moral, deve ser silenciada em nome do autoritarismo. Um imenso e talvez irreversível retrocesso.
*Silvia Gonçalves é jornalista, cientista social e doutoranda pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)