Artigo | O paradoxo da meritocracia

Projeto político vazio que reflete uma concepção empobrecida da cidadania, conceito de meritocracia segue sendo uma desculpa perfeita pela manutenção das desigualdades no Brasil, argumenta o advogado e ativista Thiago Silva

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Em tempos de crise nas instituições, lutas vazias pelo poder, aprovação de bilhões para o malfadado fundo partidário, e mesmo com a pandemia destruindo famílias, levando a nossa economia ao colapso e jogando milhões de pessoas no buraco da pobreza, o número de bilionários cresceu como nunca no Brasil. 

Além disso, nossos parlamentares tentam a todo custo manter privilégios e seus penduricalhos. Se houve o veto do aumento salarial durante a pandemia, a Câmara dos Deputados, em ato assinado pelo presidente Arthur Lira, determinou o aumento de 171% do valor do reembolso dos parlamentares em procedimentos médicos. As instituições financeiras lucram como nunca dantes na história brasileira.

Na outra ponta, ou seja, das pessoas que vivem fora desta bolha de privilégios, o desemprego atingiu patamares absurdos e milhões de pessoas voltaram para o estado de miséria absoluta.

Chegamos ao ponto de em algumas regiões do Brasil existirem filas de famílias em busca de doação de ossos para saciar momentaneamente a sua fome. E percebemos que assim como água e óleo, a realidade dos pobres e a das classes privilegiadas não se convergem. 

Apenas para ilustrar: em estudo sobre mobilidade social realizado em 2018 pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que dentre 30 países pesquisados o Brasil ocupa a 28ª posição, concluiu-se que “em muitos países, as pessoas na parte inferior da escala de renda têm poucas chances de subir e as que estão no topo permanecem no topo – o elevador social está quebrado. Isso tem consequências econômicas, sociais e políticas prejudiciais. A falta de mobilidade ascendente implica que muitos talentos são perdidos, o que prejudica o crescimento econômico potencial. Também reduz a satisfação de vida, o bem-estar e a coesão social. A mobilidade social é baixa na parte inferior: ‘pisos pegajosos’ impedem que as pessoas subam, e ainda mais baixa no topo: os tetos ‘pegajosos’. Além disso, existe um risco substancial para os lares de renda média de deslizarem para rendas baixas e pobreza ao longo do seu ciclo de vida.”

Para mitigar os reflexos deste elevador quebrado, a OCDE apresentou algumas sugestões que todos sabemos, mas que nada é feito: melhorar o gasto público, investimento na educação (sobretudo ensino básico) e na área da saúde. Infelizmente, a conclusão dessa lógica perversa é: se o pai é pobre, provavelmente o filho será igualmente pobre. 

Outro exemplo: no relatório de mobilidade social divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil está em 60ª entre 82 países. Referidos estudos realizados em anos distintos chegaram à conclusão de que no Brasil levaria até nove gerações para os descendentes de uma família de baixa renda atingirem a renda média. 

Se levarmos em consideração que uma geração dura em torno de 20/25 anos, os descendentes das famílias que atingiram a pobreza absoluta durante a pandemia levariam 180 anos para atingirem uma renda média.

Utilizando este mesmo recorte estatístico (apenas para exemplificar e aqui já considerando as vicissitudes da sociedade brasileira), os descendentes de ex-escravos nascidos a partir de 1888 (ano em que foi declarado o fim da escravidão por meio da Lei Áurea), atingirão a renda média em 2.068.  

Dentro deste cenário de extremos (privilégios e pobreza), a pergunta que se faz é: há, de fato, meritocracia? Para responder a primeira pergunta, precisamos contextualizar a sua aplicação à realidade brasileira e entender sua utilização no discurso liberal. 

O termo meritocracia surgiu no livro The Rise of Meritocracy (Thames and Hudson, 1958), do inglês Michael Dunlop Young, que em uma realidade distópica e satírica narra uma fábula ambientada na Inglaterra na qual as pessoas são classificadas conforme sua inteligência: mais e menos inteligentes. 

As pessoas com talento teriam a oportunidade de ascender de acordo com sua capacidade e as pessoas sem talento ficariam na base da pirâmide social. Paradoxalmente, os mais inteligentes seriam aqueles com acesso à educação de qualidade. 

Meritocracia é, em linhas gerais, um sistema de recompensa, promoção ou ascensão baseada no mérito pessoal. A ideia de que o talento e o trabalho são responsáveis pelo seu sucesso ou seu fracasso. Que a sua posição social é consequência dos seus atos. A meritocracia foca na autossuficiência do indivíduo. 

Por outro lado, o discurso ou a ética meritocrática ignora a empatia, solidariedade e humildade por aqueles que não atingiram o sonhado e utópico sucesso. 

É um discurso utilizado para legitimar que a culpa é de quem não atingiu o “sucesso”, e não de uma política opressora para grande parte da sociedade e repleta de privilégios para outra pequena e abastada parcela, tratando com uma igualdade irreal os manifestamente desiguais. 

Não considera que enquanto alguns estão no estágio de vice-presidente de uma companhia, outros igualmente capacitados estão na recepção desta mesma empresa.

Não considera, também, que não necessariamente o esforço e o talento levam ao sucesso. Que os privilégios (herança, por exemplo) e as desigualdades sociais são fatores determinantes para o “sucesso” ou o “fracasso”. 

No livro A Tirania do Mérito (Civilização Brasileira, 2020), ao relatar o lado sombrio da meritocracia, o autor Michael Sandel conclui que uma sociedade que utiliza o discurso meritocrático, ou seja, que permite à pessoa ascender por seus esforços, apresenta um veredicto duro sobre aquelas que não conseguem fazer isso. 

Para o autor, a meritocracia não é um remédio para a desigualdade, mas para o imobilismo social, justificando deste modo a própria desigualdade, criando a ilusão de que cada pessoa tem o que merece. 

Quando chegamos neste ponto (imobilismo social), conseguimos entender as razões pelas quais o Brasil figura em posições lamentáveis no ranking de mobilidade social. E a conclusão é óbvia: utiliza-se do discurso da meritocracia para justificar o sucesso de poucos e a existência de desigualdades e, ao mesmo tempo, tolhe qualquer tipo de possibilidade de que as pessoas menos abastadas ascendam por meio do elevador social. 

A meritocracia, deste modo, para o “talentoso” é um discurso/política acolhedora, na medida em que o sucesso traz a sensação de conquista individual. Ao seu turno, para o pobre é desmoralizante, imoral e utópica. 

Colocar para concorrer à mesma vaga e a ter acesso ao mesmo espaço herdeiros dos mais diversos privilégios e os que carregarão por décadas o cruel e pesado espólio da escravidão e da pandemia, por exemplo. E o pior: taxar essas pessoas como sinônimos de sucesso e fracasso, a depender da perspectiva de quem julga. 

O mérito existe, mas não legitima o discurso da meritocracia – para fazer jus a este discurso é necessário, no mínimo, igualar as condições para que as oportunidades sejam iguais.

E para igualar as condições, imprescindível a adoção de políticas públicas com o objetivo de (i) melhorar o gasto público, destinando uma parcela relevante dos recursos para o ensino pré-primário, ensino fundamental, ensino médio e superior (nesta ordem), (ii) melhorar o acesso e a qualidade dos ensinos profissionalizantes e (iii) melhorar a redistribuição de recursos por meio de reforma tributária (por exemplo) que estanque o sangramento da renda familiar brasileira. 

Mesmo assim, Sandel apresenta duas interessantes objeções que justificam a meritocracia como um projeto político vazio e que reflete a concepção empobrecida da cidadania.

A primeira diz respeito à justiça. O autor duvida que mesmo uma meritocracia totalmente realizada, na qual empregos e pagamentos refletem perfeitamente os esforços e os talentos das pessoas, seria uma sociedade justa. 

Isto porque o ideal meritocrático relaciona-se à mobilidade e não à igualdade. Ele justifica a desigualdade, sob o argumento que as pessoas podem subir ou descer o elevador da mobilidade social pautados em seus esforços. Cria o pressuposto de que as pessoas recebem o que merecem, aprofundando a diferença entre rico e pobre. 

A segunda diz respeito a comportamentos direcionados ao sucesso e ao fracasso. A meritocracia geraria a arrogância e ansiedade entre os vencedores e humilhação e ressentimento entre os perdedores. 

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Eu trabalhei muito, me dediquei o bastante e mereci o sucesso. Do lado oposto, não me dediquei o suficiente e mereci o fracasso. Na realidade, ao descrever uma distopia, Young reproduziu de forma atemporal (quiçá uma clarividência) e com riqueza de detalhes o Brasil pós democratização. 

De um lado um excesso de privilégios, do outro as sobras dos ossos e a necessidade de ajuda permanente de movimentos sociais para garantir sua mínima subsistência. E no meio, aqueles(as) brigando entre si por um lugar ao sol, conforme defendido pelo discurso meritocrático. 

Aqui se encontra o grande paradoxo da meritocracia: hipoteticamente falando, se todas as pessoas do mundo trabalharem arduamente nas respectivas áreas, ou seja, se esforçarem de forma igual, a subjetividade e/ou a sorte escolherão quem ficará com a marca do sucesso ou fracasso.  

E os vencedores continuarão os mesmos.

*Thiago Bernardo da Silva é paulistano, advogado e ativista de direitos humanos

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