Artigo | O passado que não passou: ditadura segue presente na segurança pública?

Definitivamente, a ditadura não é coisa do passado. Ela continua presente, forte, causando danos na vida das pessoas e pondo em risco a existência da nossa democracia

Rio de Janeiro – Militares seguem operando na favela da Rocinha para combater confrontos entre facções de traficantes de drogas em 2018 | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Declarações do Presidente da República trazem a público que o golpe de 1964 é coisa do passado e, portanto, não deve ser mais remexido. O importante agora, segundo o presidente, é olhar para frente.

Como não podia deixar de ser, tais falas geraram indignação e consternação. O presidente Lula (PT) foi e é muito criticado. Não pretendo aqui explorar os motivos que levaram o presidente a agir desta maneira. Pretendo demonstrar que, pelo menos na segurança pública, a ditadura continua presente na nossa sociedade. Farei isto por tópicos:

  1. Em 1967 foi criada a IGPM – Inspetoria Geral das Polícias Militares – órgão subordinado ao comando do Exército que tinha como função coordenar o emprego, exercer o controle e fiscalizar a atuação das polícias em todo o território nacional. A IGPM significou a porta de entrada do regime militar para garantir a atuação das polícias nos moldes da Doutrina de Segurança Nacional. Uma de suas tarefas foi (e ainda é) assegurar a unidade de doutrina no emprego das polícias militares. Hoje em dia tal órgão ainda existe, nos mesmos moldes em que foi criado durante a ditadura. A militarização das polícias é um fenômeno marcante.
  2. Em 02 de outubro de 1969, através da Ordem de Serviço “N”, nº 803, a Superintendência de Polícia do Estado da Guanabara criou o Auto de Resistência, para a elaboração do registro de ocorrências com resultado morte de pessoas pelas forças policiais. Bastava a versão dos agentes públicos envolvidos. O flagrante delito deixou de ser aplicado. 

    Desde então o “auto de resistência” se alastrou por todas as polícias brasileiras, em alguns estados com denominações diferentes. No estado de São Paulo recebeu o nome de Resistência Seguida de Morte. Em 2003, passou a ser chamado de Morte Decorrente de Intervenção Policial. É importante frisar que a forma de registro permanece a mesma. Basta a versão dos policiais, geralmente, sem testemunhas do fato. Tal qual ocorria na ditadura.
  3. O decreto lei que criou as polícias militares em 1969 continua válido até hoje. Notem que ele menciona, expressamente, o AI5 comoAI-5 referência. O número de mortos pelas forças policiais aumentou consideravelmente desde a publicação deste decreto. A recente lei orgânica das polícias militares exacerbou a militarização e não o revogou.
  4. Desde a ditadura, até os tempos atuais, está presente, nos discursos das autoridades e nas ações das polícias, a lógica do combate e da eliminação do inimigo. Para eles há uma guerra travada e a eliminação dos inimigos é medida hábil a prover a segurança da sociedade. As práticas policiais, desde a atuação dos agentes, passando pelo registro das ocorrências, até o desfecho que assegura, na maioria das vezes, a impunidade, continuam as mesmas desde a ditadura. Há falta de transparência, não há um efetivo controle social sobre os atos da polícia. 

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Definitivamente, a ditadura não é coisa do passado. Ela continua presente, forte, causando danos na vida das pessoas e pondo em risco a existência da nossa democracia.

*Adilson Paes de Souza é doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano, pós-doutorando em psicologia social e mestre em direitos humanos pela Universidade de São Paulo (USP), além de autor de Guardião da Cidade: Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares.

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