Artigo | O perigo de uma história única

A tentativa de apagamento das perspectivas históricas plurais, especialmente a do povo negro, não tem lugar no Brasil do século XXI

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Esclareço que não sou o criador deste título. Trata-se do nome do livro de autoria da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Referido livro é uma adaptação da primeira palestra proferida pela autora no TED Talk, em 2009.

Aproprio-me momentaneamente do título deste famoso livro em benefício da arte jornalística e aqui, longe de me colocar no seleto grupo de artistas, quero apenas valer-me desta arte, na medida do possível, como meio de reflexão e conscientização social.

Afinal de contas, o que sabemos sobre as outras pessoas? O que sabemos sobre outros povos, além do que escutamos? Além das histórias escritas de forma dissociada e não pelos protagonistas?

Estes questionamentos servirão de recorte para o que virá a seguir.

Passamos parte da nossa vida cercados por julgamentos, convicções, ideias, juízos, definições, paradigmas sobre pessoas/povos que fogem à nossa compreensão. Obviamente que é impossível saber, entender e compreender as especificidades de tudo que há no mundo.

Quiçá apenas (para quem acredita) forças etéreas/celestiais conseguiriam compreender e ter a resposta para os inúmeros inconclusivos questionamentos sobre a humanidade.

Aprendemos desde cedo sobre as aventuras dos bandeirantes, sobre as expedições dos jesuítas com o objetivo de disseminar os valores cristãos.

Aprendemos sobre a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (Revolta dos Alfaiates -1798) e a Revolução Pernambucana (1817), como movimentos separatistas e de caráter emancipacionistas que contribuíram para o fim do período colonial e início (tardio) da República.

Aprendemos sobre o famoso “Dia do Fico” (1822), dia no qual Dom Pedro I declarou, basicamente, que não cumpriria mais as ordens da corte portuguesa. “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digo ao povo que fico.”

Aprendemos também sobre a escravidão, sobre a heroína branca que libertou o povo preto.

Por outro lado, as mazelas do período escravocrata que reverberam até hoje foram sistemática e institucionalmente negligenciadas do ponto de vista educacional.

Juntamente com essa negligência, numa relação de fim justificando os meios, a história, tradições e lutas do povo preto ficaram para escanteio.

Neste ponto, é de se notar a corajosa, valente e essencial luta travada por diversas personalidades (artistas, escritores, intelectuais, esportistas, músicos) e movimentos sociais para não deixar cair no esquecimento a linda e árdua história de um povo, e manter igualmente viva a história sombria da escravidão no Brasil.

Para entender o que virá a seguir, faço um breve apanhado histórico.

A escravidão foi o fundamento e justificativa do capitalismo mercantilista.

No Brasil, iniciou-se em razão da falta de mão de obra portuguesa e do desinteresse da população de Portugal em migrar para uma colônia essencialmente de exploração.

Inicialmente, por meio de escambos, os indígenas substituíam sua mão de obra por objetos insignificantes (e aqui falamos no período posterior a extração do pau-brasil).

No livro “História Econômica do Brasil”, Caio Prado Júnior assim relata como se deu a escravidão dos povos indígenas: “em primeiro lugar, à medida que afluíram mais colonos, e portanto as solicitações de trabalho, ia decrescendo o interesse dos índios pelos insignificantes objetos com que eram dantes pagos pelo serviço. Tornam-se aos poucos mais exigentes, e margem de lucro do negócio ia diminuindo em proporção. Chegou-se a entregar-lhes armas, inclusive de fogo, o que foi rigorosamente proibido, por motivos que se compreendem. Além disso, se o índio, por natureza nômade, se dera mais ou menos bem com o trabalho esporádico e livre da extração do pau-brasil, já não acontecia o mesmo a disciplina, o método e os rigores de uma atividade organizada e sedentária como a agricultura. Aos poucos foi se tornando necessário forçá-lo ao trabalho, manter vigilância estreita sobre ele e impedir sua fuga ou abandono da tarefa em que estava ocupado. Daí para a escravidão pura e simples foi apenas um passo”.

Os povos indígenas se defenderam e houve o óbvio conflito. Diversas vidas foram ceifadas dos dois lados (colonos e nativos) e o trabalho forçado indígena manteve-se de forma instável no Brasil. Soma-se a isso o fato de que os nativos (i) conheciam o território e (ii) foram morrendo, aos poucos, pela falta de imunidade às doenças trazidas pelos europeus.

Por meio da rota comercial desenvolvida a partir da expansão marítima no século XV, os portugueses passaram a traficar da costa africana marfim, ouro e escravos. Os negros foram introduzidos em serviços domésticos, trabalhos urbanos e na agricultura e acabaram sendo, sob o ponto de vista português, a substituição lógica e natural da mão de obra indígena.

Com o incremento das grandes propriedades açucareiras, o crescimento populacional e extensão da população, a escravidão tornou-se pedra fundamental do capitalismo.

Senhores de engenho, antigos donatários da capitania, novos colonos eram agora “proprietários” de escravos.

À medida que o Brasil surgia e se organizava como sociedade economicamente relevante, a escravidão exercia o seu papel preponderante para o desenvolvimento da economia. Por conseguinte, as instituições sociais engendraram-se para reproduzir sistematicamente o sistema escravocrata.

A formação econômico-social brasileira permitiu que a escravidão se espalhasse pelo conjunto do tecido social, formando uma ampla massa de gente interessada na manutenção da escravidão e de sua estabilidade. Daí que a superestrutura jurídico-política, o liberalismo brasileiro – consubstanciação deste pacto – se deu juntando amplos setores contra os escravos. O caráter verdadeiramente liberal, do ponto de vista político, da Constituição de 1824 e do Código Penal de 1830 é uma razão desta realidade.

O movimento abolicionista crescia e se organizava, movimentos estes capitaneados em diferentes frentes e períodos por Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, dentre outros. Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Maria Firmina dos Reis, dentre outras.

Aqui um parêntese para a fundamental importância dos quilombos como meio de resistência ao escravismo, lugar de pertencimento e preservação da herança cultural.

Aliado à essa efervescência, houve uma crescente crise do sistema escravista, motivada pelo cada vez maior desinteresse econômico na sua manutenção. Até que em de 13 de maio de 1888 a princesa Isabel assinou a conhecida Lei Áurea.

Quando menciono as personalidades que capitanearam a abolição, tomo o cuidado de indicar apenas personalidades negras, porque inevitavelmente não foi dada a merecida importância na posterior narrativa histórica.

Fato é que, em nível nacional, pouco se aprende sobre a história de negros e negras que mudaram o curso de parte da história e inspiraram e influenciaram as gerações atuais.

Durante a formação histórica, política e social do Brasil as instituições públicas e privadas operaram a todo vapor para perpetuar o racismo estrutural que se manifesta dentro de uma (infeliz) normalidade cotidiana.

Diversas políticas e ações públicas (violência policial direcionada, encarceramento em massa, subutilização ou ausência de orçamento destinado às pessoas em situação de vulnerabilidade) e privadas (discurso da meritocracia, dificuldade de implementação de políticas de diversidade1) fomentaram pré-julgamentos dos negros, massacrando-os em diversas frentes.

A impressão é que o negro foi escravizado, liberto pela heroína branca, jogado às margens da sociedade e lá quer ficar e de lá não quer sair. Um povo sem história.

A socióloga estadunidense Patricia Hill Collins utiliza o conceito de “imagens de controle” para demonstrar que grupos dominantes criam e manipulam certos estereótipos associados a partir da raça, gênero, classe e sexualidade para permanecer no poder, articulando a representação social de determinado grupo.

Dentre essas frentes, uma das mais perigosas é tolher sistematicamente a população brasileira de conhecer as histórias e estórias do povo negro e de seus personagens.

Esse hiato na formação histórica, política e social no Brasil criou sobre pessoas/povos julgamentos, convicções, ideias, juízos, definições, paradigmas que são inverídicos, quiçá desonestos.

Daí a importância de narrar a história não apenas sob o ponto de vista tendencioso de quem defende, defendeu, concorda ou concordou com o sistema à época vigente, mas sim contar as particularidades e consequências do próprio sistema.

Se a história é, em sua maioria, contada pela perspectiva dos “vencedores”, é importante entender a história e ressignificar o passado sob o ponto de vista dos demais protagonistas da época, e não apenas com o viés eurocêntrico. Longe de querer estabelecer uma revaloração anacrônica dos fatos, e sim apresentar todos os impactos que determinada pessoa/povo teve naquele contexto.

Observa-se nas últimas décadas um início de mudança dessa mentalidade, além do que já foi corajosa e exaustivamente perseguido pelos movimentos negros na sua coletividade, e por homens e mulheres na sua individualidade.

Por exemplo, as Leis nºs. 10.639/2003 e 11.645/2008 estabeleceram as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Além disso, recentemente tivemos alguns avanços nesta perspectiva de popularizar personagens negros e seus relevantes feitos.

Em 29 de junho de 2021, Luiz Gama recebeu o título de Doutor honoris causa pela Universidade de São Paulo, que é concedido “a personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído, de modo notável, para o progresso das ciências, letras ou artes; e aos que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade, o País, ou prestado relevantes serviços à Universidade”.

Além disso, foi lançado o filme Doutor Gama, que é baseado na biografia de Luiz Gama.

A Prefeitura de São Paulo iniciou a construção de cinco novas estátuas homenageando personalidades negras: Carolina Maria de Jesus2 (escritora), Geraldo Filme (músico), Adhemar Ferreira da Silva (atleta olímpico), Deolinda Madre (Madrinha Eunice, sambista), Itamar Assumpção (cantor).

Fundamental que o ensinamento e a conscientização da história destes protagonistas do seu tempo reverberem, para que a sociedade conheça sua origem, amplie sua perspectiva sobre o mundo, resgate sua identidade.

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E neste ponto, retornamos ao livro que originou o presente artigo. “As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada3.”

1 Neste ponto, observa-se que as políticas de diversidade nas companhias se tornaram recentemente agenda institucional.

2 Encontra-se em cartaz ano Instituto Moreira Salles até o dia 30/01/2022 exposição em sua homenagem.

3 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única; tradução Julia Rome. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Pg. 32.

*Thiago Bernardo da Silva é paulistano, advogado e ativista de direitos humanos

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