Artigo | O que a PM faz e o que deveria fazer em manifestações

    Policial corajoso é aquele que cumpre a lei mesmo quando há risco para ele mesmo

    Antes de entender a função da polícia nas manifestações é preciso entender para que serve a Polícia Militar. A PM é a força ostensiva e de atendimento de ocorrências. A melhor analogia que tenho é que a polícia serve como um termômetro. Ela é quem vai medir os riscos de uma sociedade e gerar medidas para que esses riscos diminuam – é o que chamamos de prevenção. Essas ações devem ser conjuntas. A polícia fará o que ela pode fazer e solicitará apoio de outros órgãos para complementar a redução dos riscos à sociedade. Portanto, a polícia é a protetora do povo que sempre busca o caminho que gere menos dano à sociedade, agindo, preferencialmente, antes do acontecimento das situações danosas. A Polícia Militar deve procurar se adiantar e solucionar os problemas causando o menor dano possível aos envolvidos.

    Nas manifestações não é diferente. A polícia age sob três comandos diferentes. O primeiro é o Governo, o segundo são as Forças Armadas e o terceiro são a Constituição e as leis. Dos três, o maior é o ordenamento legal. Qualquer determinação do governador, do comandante-geral, do chefe das Forças Armadas (subordinado ao presidente) só deve ser seguida se for legal. Portanto, os comandos que essas pessoas têm sobre as polícias é limitado pela lei. Como a polícia é militar, os comandantes – até mesmo o governador – têm o poder de movimentação tática das tropas. Ou seja, eles podem definir – cada um dentro dos seus limites de poder hierárquico – aonde as tropas irão, onde posicioná-las, em quais locais e cidades aumentar ou diminuir o efetivo. Porém, nenhuma dessas autoridades têm o poder de emitir uma ordem ilegal. Nem mesmo o governador pode mandar a polícia bater em alguém, executar alguém, torturar alguém, proibir alguém de ir e vir sem motivação legal, abordar alguém sem que haja fundada suspeita.

    Portanto, numa manifestação a PM não tem lado. Ela não está na manifestação para garantir a ordem, até porque ordem é um conceito muito subjetivo. Ela está na manifestação para garantir o cumprimento da lei e a incolumidade dos envolvidos. Ordem pode ser, para mim, que todos fiquem em silêncio, já para você pode ser que ninguém faça barulho numa praça. A polícia não tem o direito de ordenar tais coisas. Ordem é um conceito elástico, que é um prato cheio para gerar ilegalidades.

    Na manifestação, o policial será acionado e irá para agir como termômetro, como intermediário, como negociador. Certa vez, eu fui acionado por causa de uma manifestação que ocorria na BR-116, no Paraná. Um grupo de pessoas estava trancando a via. Fui até o local e conversei com os manifestantes. Perguntei o que eles reivindicavam e, após um período de conversa, nós entramos em acordo de que seria feita uma caminhada pela BR até determinado ponto, e que depois eles iriam sair da estrada e conversar com uma autoridade da cidade. Nós, então, ajudamos na realização do encontro entre a autoridade e os manifestantes e acompanhamos todo o trajeto deles pela rodovia, para garantir que nenhum veículo colocasse a vida deles em risco. Durante a caminhada, conseguimos negociar para que eles permitissem que uma faixa da BR fosse liberada para que os veículos pudessem passar. Assim, o trânsito foi se normalizando, os manifestantes conseguiram o contato que queriam e não houve feridos.

    Em outra situação, um grupo de pessoas havia fechado uma via com pneus e pedaços de madeira, queimaram parte do material e impediram a passagem dos veículos. A reivindicação era por conta das más condições da via. Conversei com os manifestantes e chegamos ao acordo de que não seria mais queimado nenhum material e utilizei a lei para demonstrar possíveis enquadramentos. Solicitei que a via fosse liberada e eles se negaram. Perguntei qual era o objetivo da manifestação e eles me explicaram a situação. Negociei, então, para que eles liberassem a via caso um representante da cidade viesse ao local e a mídia gravasse a manifestação e o compromisso da autoridade política. Eles aceitaram o acordo e assim ocorreu. Terminadas as entrevistas, os materiais foram retirados e a manifestação encerrada com um compromisso de políticos da cidade para com os moradores do local.

    Certa vez, o governo do Paraná iria inaugurar um projeto de informática nas escolas. Ele resolveu chamar um grupo de alunos e professores para prestigiar o evento que aconteceu em uma praça pública. Eu era um dos responsáveis pela segurança do local. Enquanto o evento era preparado e os alunos chegavam juntamente com os professores, alguns cidadãos entregavam panfletos, que continham críticas ao governador e sua gestão. Os oficiais, que eram meus superiores e estavam no local, vieram até mim para que eu ordenasse a minha tropa que retirasse os panfletos das mãos das crianças e adolescentes que quisessem ver o evento. Também ordenaram que eu tirasse os manifestantes de lá e os mantivessem afastados. Obviamente, eu não cumpri nenhuma dessas ordens, porque não havia base legal para executá-las. Eu sabia que poderia ser preso por me negar, mas risco é parte da vida de um policial. Policial corajoso não aquele que usa boina cobrindo o olho e colete tático. Policial corajoso é aquele que cumpre a lei mesmo quando há risco para ele mesmo.

    No final, os próprios oficiais superiores começaram a recolher os panfletos das mãos das crianças e adolescentes e eles mesmos foram ordenar que os manifestantes se afastassem. Enquanto isso, eu fui para minha tropa e disse para que nenhum deles fizesse o que aqueles oficiais estavam ordenando e fazendo e que eu, como comandante, estava respaldando a ação legal deles.

    O grande chefe da polícia é a lei, que só permite exceção se o Judiciário assim determinar. É preciso uma ordem judicial para impedir o trânsito de pessoas em um local ou para usar a força para impedir o povo de ir e vir.

    A polícia é o termômetro que pode avisar que um evento traz riscos. Eu já tive de reduzir o tempo de um show quando percebi que pessoas podiam acabar pisoteadas. Nesses casos há respaldo legal, há risco iminente e não havia solução que causasse menos dano do que a redução do tempo do show. Fora dessas situações, os direitos fundamentais só podem ser tolhidos se a lei permitir ou se um juiz determinar. O governador não detém esse poder, nem o comandante-geral. E a ordem do juiz deve ser muito clara e específica sobre quais direitos está regulando e qual o nível da regulação.

    Por exemplo, uma ordem de impedimento de manifestantes em determinado local deve conter o tempo do impedimento e a forma detalhada de ação da polícia, declarando, inclusive, quais os materiais e o nível máximo de força poderão ser utilizados para fazer valer a determinação. E a polícia deverá emitir relatório público com o seu parecer relativo à ação e à decisão judicial. Sendo, novamente, o termômetro que vai informar ao povo, ao governo e ao judiciário quais as consequências que ela, por ter experiência nesses casos, espera da ação conforme ela está sendo determinada pelo judiciário. Já quanto as ordens de oficiais, comandante-geral ou governador, estas ordens não têm poder de passar por cima do ordenamento legal. Simples assim.

    E como a polícia age em manifestações?

    As polícias militares geralmente agem como se fossem polícias pessoais do governador, que é quem manda e dá ordens para o comandante-geral cumprir. Independentemente da ordem ser legal ou não. A Polícia Militar se coloca como a polícia privada do governador que está contra os manifestantes. Estes são vistos como inimigos, como desordeiros. A polícia age como um capacho que não segue nenhum ordenamento legal. Como uma força fraca que teme o governador e ignora as leis. Essa é a receita para a tragédia.

    Primeiro porque o governador, normalmente, não é um especialista em segurança pública. E quando ele vê uma polícia acovardada que faz qualquer coisa que ele pede, acaba por se sentir confortável para pedir qualquer absurdo e tem a certeza de que o absurdo será cumprido. A polícia deixa de agir como termômetro e age como se fosse uma partida de dois times. E ela está no time do governador. Ordens ilegais são cumpridas, é usada força excessiva, são esmagados os direitos fundamentais das pessoas, inclusive dos policiais militares, que são ameaçados de prisão se não cumprirem uma ordem ilegal. A polícia tenta ludibriar os manifestantes, age como estrategista do governo, não tem nenhuma neutralidade e desmotiva a manifestação, que é um direito legal. Age para agradar o governador em troca de migalhas, como promoções ou reajustes. Age, inclusive, politicamente, mudando de postura quando uma manifestação é de um viés político ou de outro.

    Esse tipo de ação deriva, em parte, da história das polícias e da constituição dos estados brasileiros. O zigoto que se tornará a PM surge como uma polícia do governador, particular, que enxergava como cidadãos somente uma parte do povo. Essas polícias surgem quando a escravidão ainda vigorava e agem para manter os que estão no poder. Podemos dizer que são polícias de guerra interna, contra o povo explorado, contra a pessoa escravizada que resistiu.

    Após a Segunda Guerra Mundial, nós temos, segundo Norberto Bobbio, uma expansão das democracias pelo mundo. Negros, mulheres, pobres conquistam o direito ao voto, passam a participar mais de questões políticas e reconhecem seus direitos fundamentais. O problema é que o pós-guerra no Brasil foi marcado por um namoro com o fascismo e com uma resistência em se aceitar esses “novos cidadãos”. A polícia acaba por continuar servindo a um senhor, agindo como a polícia do governador contra o povo.

    Parte da culpa dessa situação é do militarismo. O militarismo cria uma instituição total, que possui algumas características específicas. Uma delas é que essas instituições não permitem que agentes de fora introduzam conhecimento nelas. É como se a polícia tivesse parado no tempo. Ela também reprime a produção de conhecimento interno e só permite a repetição do que já foi criado e a doutrinação dos novos integrantes. O militarismo também dá ferramentas para que essas pressões sejam gigantes para os militares de menor patente, que acabam presos, ou excluídos, ou aposentados ou se rendem ao sistema. Outro problema é que o nosso militarismo vem dessa estrutura de poder que colocava a polícia como órgão particular de alguns agentes, e, como a polícia é uma instituição total e que, por isso, muda devagar, ela coloca o poder do superior acima da lei. Portanto, a lei se torna mero capricho. O que vale mesmo é a palavra do superior hierárquico, do comandante-geral, do governador. 

    Outro fator que entra na jogada são os núcleos de ações ilegais criados na ditadura militar de 1964. As forças armadas utilizaram as polícias militares e civis para fazer o trabalho ilegal. Para isso, o exército criou núcleos de policiais que não cumpriam a lei e nem se subordinavam a certas autoridades, mas se subordinavam a outras e podiam descumprir a lei. O descumprimento da lei era incentivado e premiado com a ascensão na carreira, além do fator moral dentro das instituições. Isso ajudou a solidificar a cultura da polícia contra o povo, da polícia de alguns que estão acima da lei.

    Outro fator é que nossas polícias não são democráticas. Os policiais da base não têm voz alguma. Não podem votar para escolher o comandante-geral, não decidem nada, dificilmente encontram portas para ascender na carreira. O povo então, não tem poder algum para decidir quem serão os coordenadores das polícias. Os cargos fundamentais para a ação coerente da polícia militar são impostos ao bel prazer do governador. Isso cria uma pressão no comandante-geral para que ele agrade ao governador. Caso ele não faça esse vexatório papel, então sempre terá outro coronel ávido por tomar o lugar daquele coronel mais legalista e agir como um lacaio do governador.

    A Polícia Militar precisa sair das mãos do governador para romper com essa cultura. Ela precisa de autonomia e democracia. Ela precisa de participação popular, de voto popular e independência de forças políticas para agir corretamente. Com a estrutura atual, eu lamento informar, mas se prepare para tomar tiro de borracha se não fizer o que o governador quer. E torça para que a munição seja de borracha. O povo que mora nas comunidades mais pobres nem sempre tem essa sorte.

    (*) Martel Alexandre Del Colle é aspirante a Oficial aposentado da Polícia Militar do Paraná

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