Artigo | O que está por trás do Massacre em Manaus é controlar as ‘biqueiras’

    O domínio do sistema prisional não é a meta final. O que está em jogo é o domínio do tráfico de drogas na região, que ganhou ainda mais importância depois que o PCC dominou a rota da cocaína boliviana

    Por Guaracy Mingardi

    O massacre nos presídios de Manaus não foi o primeiro nem o será o último ato de barbárie em nossos presídios. Dois anos atrás, a luta entre organizações rivais provocou a morte de 56 pessoas nos mesmos locais de agora. A diferença é que desta vez não foi uma disputa entre duas organizações criminosas distintas, mas entre prisioneiros que supostamente jogam no mesmo time. Segundo autoridades amazonenses, os acontecimentos recentes foram parte de uma guerra civil. Tanto os 55 mortos, quanto seus assassinos, pertenciam à FDN (Família do Norte). Estava em disputa a chefia da organização.

    O conflito começou domingo (26/5) e causou a morte de quinze presidiários. Esses, ao que tudo indica, aparentemente morreram lutando. Já a maioria das quarenta vítimas de segunda-feira (27/5) foi asfixiada, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária. O que é um indicativo de que a ação foi planejada com bastante cuidado e frieza. Se fosse numa disputa no pátio ou nos corredores muitos teriam sido vítimas de ferimentos por facas, improvisadas ou não.

    Esse evento é muito parecido com os expurgos feitos pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo nos anos 90, momento em que se livraram dos grupos rivais e ganharam o domínio do Carandiru. E ainda mais similar as mortes do início da década passada, quando Marcola & Cia assumiram o controle da organização. Depois disso, nunca mais tiveram problemas em manter o domínio sobre a maior parte do sistema carcerário paulista.

    A grande questão agora é saber se o grupo que ordenou a chacina desta semana conseguiu o poder em todo o sistema ou a luta vai se entender. O fato é que essas mortes nunca são o último ato da tragédia. O domínio do sistema prisional não é a meta final. O que interessa de fato é controlar a bandidagem nas ruas. É lá que se ganha o dinheiro do tráfico. Controlar os presídios significa obter, no mínimo, o respeito dos criminosos. Na prática, todo profissional do crime, seja ele ladrão, traficante, etc, sabe que um dia ou outro vai “puxar cana”, como se dizia antigamente. Portanto, tem de manter um bom relacionamento com quem manda atrás das grades. E como a mortandade mostrou, não é o poder público que impõe a ordem. Muito menos a empresa terceirizada que está encarregada do local onde ocorreu a chacina. Segundo o Ministério Público apontou em 2017, havia falhas na direção do presídio, que dava muitas regalias aos presos.

    E por que o Amazonas é tão importante para o tráfico? Não é apenas por conta do mercado local, também tem estreita ligação com o tráfico de cocaína peruana através do rio Solimões. Desde a morte do traficante Rafaat na fronteira com o Paraguai, vários grupos perderam o acesso à principal rota para a cocaína boliviana, que ficou nas mãos do PCC. Portanto cresceu a importância da estrada fluvial amazonense. E é isso que está por trás do controle dos presídios da região. O poder sobre a criminalidade local para facilitar o tráfico.

    Se o grupo que comandou o massacre de segunda feira virou hegemônico, vai haver uma paz aparente no sistema e nas ruas de Manaus. O problema é se esse foi apenas o primeiro ato de uma guerra pelo controle das “biqueiras” (pontos de venda de drogas no jargão do crime paulista). O terceiro ato seria essa disputa chegar aos pontos de descarga da droga que vem pelos rios e, portanto, pela rota internacional.  E se a guerra ocorrer, no contexto atual, a situação pode refletir em outros estados. Porque cada um dos grupos em que se dividiu a FDN vai tentar obter ajuda de uma das duas principais organizações criminosas do país. O que pode recrudescer a violência em todo o Brasil. E o número de homicídios, que vinha caindo nos últimos 16 meses, pode voltar a crescer.

    O governo amazonense e o federal fizeram o movimento óbvio. Transferiram os supostos líderes da matança para presídios federais. O que, apesar de ser lógico, pois evita que eles mantenham controle sobre as tropas, é uma faca de dois gumes. Pode desorganizar temporariamente os vencedores da disputa, mas também pode ajudar o grupo minoritário, cujos líderes aparentemente não serão transferidos, a se firmar novamente. O correto seria assumir a mesma atitude que a administração penitenciária de Santa Catarina tomou anos atrás. Depois de controlar vários ataques a ônibus, depredações e tiroteios, eles também solicitaram a transferência de lideranças para o sistema federal. A questão é que mandaram não apenas os chefes da facção que promoveu o quebra-quebra. Também alguns dos líderes da oposição. Assim evitaram que um dos grupos assumisse a hegemonia no estado.

    Como tudo em segurança pública, não existe uma receita mágica, que possa resolver a situação de vez. Os administradores do sistema de segurança têm que pensar bem os próximos passos. O risco é de que ocorra novo massacre daqui algum tempo, ou então que, num curto prazo, a luta vá para as ruas e vitime não apenas criminosos, mas também cidadãos comuns.

    (*) Guaracy Mingardi é ex-investigador da Polícia Civil de São Paulo e especialista em Segurança Pública. É cientista político, mestre pela UNICAMP e doutor pela USP.

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