Artigo | Obrigado, Beatriz Nascimento

Agora doutora honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, historiadora mudou a perspectiva sobre a cultura negra do país ao estudar e ressignificar a história dos quilombos

Falamos no artigo “O perigo de uma história única” da importância de conhecer a história das pessoas e dos povos para evitar preconceitos, julgamentos e opiniões equivocadas ou falaciosas e, oportunamente, vieram à tona excelentes notícias que serviram como gatilho (aproveitando-se um termo atualmente usual) para este breve escrito.

Em 28 de outubro de 2021, Maria Beatriz Nascimento recebeu a honraria de doutora honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a pedido da Escola de Comunicação da UFRJ. Ela concluiu a graduação e a pós-graduação na UFRJ. No dia 17 de março de 2022, o Conselho Universitário da Universidade Federal Fluminense aprovou a concessão do título de honoris causa para Beatriz Nascimento, em razão do destaque e relevância na academia. 

Interessante fluir resumidamente pela vida e obra desta historiadora, poeta e professora, para que esta seja mais uma via de acesso à sua obra. Alerta-se, oportunamente, que navegarei lateralmente pela complexidade e beleza do feminismo negro, até porque não teria condições para tanto. Objetiva-se reverberar a vida e história desta incrível e corajosa mulher brasileira.

Maria Beatriz Nascimento nasceu em 17 de julho de 1942 em Aracaju, no Estado de Sergipe. Em 1949, sua família foi morar no bairro do Cordovil, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Iniciou a graduação em História em 1968 na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1968 é conhecido por historiadores como “O ano que não terminou” e foi pano de fundo para diversos eventos importantes no mundo inteiro: protestos contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, Primavera de Praga na República Tcheca, protestos de abrangência nacional em razão do assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto pela polícia militar, assassinato de Martin Luther King, passeata dos 100 mil contra o regime limitar no Brasil, protesto dos atletas americanos Tommie Smith e John Carlos – que fizeram o gesto dos “punhos cerrados”, saudação utilizada pelos Panteras Negras e pelo movimento Black Power – etc. 

Estes eventos políticos e sociais de abrangência nacional e mundial, aliados ao Ato Institucional nº. 5, de 13 de dezembro de 1968, foram fundamentais para o início do raciocínio crítico e da militância de Beatriz Nascimento. Em 1971, concluiu a graduação em História.

Foi no estágio no Arquivo Nacional (sob orientação do historiador José Honório Rodrigues) que ela aprendeu a organizar a pesquisa acadêmica e se deparou com a realidade de que a história negra era produzida por mãos brancas, sempre de uma perspectiva do negro como eterno escravo. 

Esse incômodo fez com que ela estudasse a história de uma perspectiva diferente. Perspectiva de sujeito e não objeto. Perspectiva a partir da realidade do negro e dissociada da narrativa de historiadores brancos com influência do pensamento europeu, se negando a meramente reproduzir material produzido por outros historiadores com a mesma e superficial abordagem.  

Na metade de década de 1970 ela inicia as primeiras linhas da “história do homem negro”, algo completamente subversivo à época. No artigo “Por uma história do homem negro”, publicado na Revista de Culturas Vozes, Beatriz apresenta crítica à ciência e à intelectualidade por não reconhecerem da história do negro. 

Não podemos aceitar que a história do negro no Brasil, presentemente, seja entendida apenas através dos estudos etnográficos, sociológicos. Devemos fazer a nossa história, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos estudando-os, não os negando. Só assim poderemos nos entender e nos fazermos aceitar como somos, antes de mais nada pretos, brasileiros, sem sermos confundidos com os americanos ou africanos, pois nossa história é outra, como é outra nossa problemática” 1

Essa nova perspectiva teve grande resistência nos historiadores da época. Beatriz elege o tema da mulher negra e a trama entre raça, classe e sexo como relevante e, em 1976, publicou duras críticas ao filme Xica da Silva, do diretor Cacá Diegues, pela exagerada submissão da mulher negra. 

No artigo “Senzala vista da Casa Grande”, ela destaca que o filme transmitiu uma visão preconceituosa e racista porque é “contracultura”. O filme foi lançado em um momento que o jovem negro buscava sua identidade racial positiva e protestava contra a discriminação racial através do som e da dança black soul nas grandes cidades do Brasil. Nesta época, a nova identidade dos jovens negros era representada por Shaft, Muhammad Ali, James Brown, Malcom X. 

Seu trabalho mais conhecido é o filme Ori, que teve como foco os deslocamentos da população negra entre África e Brasil, entre o Nordeste e o Sudeste, entre culturas e movimentos negros, em aproximação com sua trajetória entre Aracaju e o Rio de Janeiro, entre quilombos e terreiros. Para compreender essas diásporas, ela cunha os termos “transmigração” e “transatlanticidade”. Esta última noção se aproxima das proposições que outros autores e outras autoras trariam depois, como tem sido apontado: Lélia Gonzalez com “amefricanidade”, com foco em negros e ameríndios; Luis Felipe de Alencastro com “Atlântico Sul”; e Paul Gilroy com “Atlântico Negro”2

Beatriz dedicou parte dos seus estudos à formação dos quilombos e sua importância como lugar de conexão com nossos ancestrais, bem como contribuição para a formação do pensamento do movimento negro. De uma forma didática e deveras acadêmica, colocou o quilombo como espaço, como essência, como espaço de proteção e criação de comunidade.

Esses estudos foram fundamentais para minimizar interpretações estereotipadas de lugar de seres primitivos, malfeitores, irresponsáveis e sem qualquer caráter político. 

Com a publicação de artigo no Jornal do Brasil em novembro de 1974, o Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, do qual participava, entre outros, o poeta Oliveira Silveira, sugeria que a data de 20 de novembro, lembrando o assassinato de Zumbi e a queda de Quilombo dos Palmares, passasse a ser comemorada como data nacional, contrapondo-se ao Treze de Maio. Argumentava que a lembrança de um acontecimento em todos os sentidos dignificante da capacidade de resistência dos antepassados traria uma identificação mais positiva que a abolição da escravatura, até então vista como uma dádiva de cima para baixo, do sistema escravagista e de Sua Alteza Imperial.

A sugestão foi imediatamente aceita, e a procura de maiores esclarecimentos sobre aqueles fenômenos de resistência tomou forma de aulas, debates, pesquisas e projeções que alimentaram o anseio de liberdade de jovens através de entidades, escolas, universidades e da mídia. Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento negro e esperança para uma melhor sociedade. Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural. Tudo, de atitude a associação, seria quilombo, desde que buscasse maior valorização da herança negra.”3 

Beatriz Nascimento entendia que o quilombo, oficialmente, termina com a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888. No entanto, o ideal do quilombo permanece como recurso de resistência e enfrentamento das mazelas sociais direcionadas atualmente para a população negra jogada à margem da sociedade e em áreas periféricas. 

Ao estudar os quilombos com o objetivo de despi-los da visão estereotipada, refletiu em estudos contemporâneos e profundos sobre a sua constituição, significado, histórias e objetivos. 

A historiadora Mariléia de Almeida, por exemplo, denomina os quilombos como territórios de afeto que referem-se às práticas construídas pelos deslocamentos dos sentimentos relacionados tanto à materialidade da terra – seja o medo de perdê-la, seja o cansaço da espera jurídica, seja o orgulho de preservá-la – quanto aos dispositivos dominantes de poder, que se baseiam nas exclusões de raça, gênero e classe4.

Givânia Maria da Silva defendeu sua dissertação – Educação como processo de luta política: A experiência de “Educação Diferenciada” do território quilombola de Conceição das Crioulas – para obtenção do título de mestre em Políticas Públicas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), com o objetivo de analisar a proposta de educação da comunidade quilombola do território de Conceição das Crioulas para identificar como esta se relaciona com as lutas de seus moradores(as).

Ao discorrer sobre a luta dos movimentos negros para reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos ou comunidades quilombolas como sujeitos de direitos, ela trouxe interessante e atual reflexão do que vem a ser quilombo5

“Partindo dessa perspectiva, pensar quilombo como “o presente”, é necessário nos despir dos conceitos de quilombo apenas como algo ligado ao passado estático e reconhecê-lo no hoje. Essa visão estática não reconhece as mudanças que ocorreram, ora por força das organizações próprias dos quilombos, ora pelas novas formas de escravização. Só a partir de uma compreensão nova, em que se considere a diversidade quilombola, suas características e especificidades culturais, regionais, geográficas e políticas é que podemos compreender melhor quem são os quilombos, suas lutas e resistências como estratégias de construção de seus modelos de desenvolvimento e processos organizativos próprios. É preciso pensar em um presente que coloque o Estado brasileiro na condição de agente devedor, mas, ao mesmo tempo, responsável pela elaboração e execução das políticas públicas para as comunidades quilombolas, rompendo com as marcas do passado escravo que as colocou em situação de desigualdade.” 

Este é o maior legado de Beatriz: abrir caminhos para novas narrativas.  

Entre 1979/1984, Beatriz cursou o mestrado na Universidade Federal Fluminense, mas infelizmente não concluiu. Em 1994, iniciou outro mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ, mas o curso foi interrompido pela sua morte em 1995. 

Beatriz Nascimento demonstrou ser uma mulher de coragem inabalável, com ideias revolucionárias de uma pessoa que direcionou sua vida acadêmica para o desenvolvimento da história negra do ponto de vista do próprio negro, sem o viés eurocêntrico. 

Contribuiu para abrir espaço para novas narrativas históricas e sociais sob o ponto de vista de uma mulher negra, acompanhada por Lélia Gonzalez, Thereza Santos, Alzira Rufino, Inaicyra Falcão dos Santos, dentre outras, e inspirou as gerações vindouras a estudar e compreender questões íntimas da história negra. 

Sua coragem em apresentar a história negra sob o ponto de vista do próprio negro reverberou até os dias de hoje e ajudou a constituir um sentimento de pertencimento e, inclusive, reforçar o imaginário do povo negro. 

Beatriz Nascimento teve coragem de interromper a história eurocêntrica, interromper a soberba do homem branco que se vangloria pela destruição e mazela que realizou. Beatriz é uma mulher negra, que demonstrou e comprovou que nós somos senhores(as) da nossa própria história, que temos uma linda história a ser contada e estudada, de reinos, rainhas, reis, de cultura, de música, de luta.

Ainda hoje, a intelectualidade negra se inspira no legado de Beatriz estudando, pesquisando e ajudando a compilar a verdadeira, complexa e rica história do negro brasileiro. 

Ajude a Ponte!

Definitivamente pensou no seu legado para as gerações futuras por meio de uma sofisticada e acessível obra que transcendeu seu tempo e inspirou a incansável e interminável luta dos movimentos negros.

Obrigado Beatriz.

É tempo de falar sobre nós mesmos.

* Thiago Bernardo da Silva é paulistano, advogado e ativista de direitos humanos


1 Por uma história do homem negro. Artigo publicado na Revista de Cultura Vozes.

2 Trecho extraído da introdução do livro “Uma história feita por mãos negras” organizado por Alex Ratts. Páginas 15/16.

3 “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”. Texto publicado na revista Afrodiáspora em 1985.  Fls. 165/166.

4 Almeida, M. (2021). Território de afetos: práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro. História Oral, 24(2), 293–309.

5 SILVA, Givânia Maria. Educação como processo de luta política: a experiência de “educação diferenciada” do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação (Mestrado Políticas Públicas e Gestão da Educação) – UnB, Brasília, DF, 2012. Pg. 37/38.

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