Cantora fez história ao ser a primeira travesti da história do Big Brother Brasil, programa de maior audiência da televisão brasileira, e pautar luta das pessoas trans: é ela, a travesti
Quando soube, uma semana antes do anúncio oficial, que a Linn da Quebrada, ou Lina Pereira, estaria no Big Brother Brasil, fiquei imensamente feliz e imensamente preocupado. Fiquei feliz porque Lina é um dos maiores nomes do ativismo trans e da música brasileira. Na real ela é muito mais do que isso: cantora, atriz, agitadora cultural, apresentadora. Saber que ela seria a primeira travesti [Ariadna, no BBB 11, foi a primeira mulher trans do programa, mas Lina é a primeira a se identificar como travesti] da história do maior reality show do país era a certeza de que ela nos representaria muito bem. A minha preocupação vem desse pioneirismo de Lina na casa mais vigiada do país: como o público reagiria? Como ela seria tratada pelos brothers e sisters?
Logo nas primeiras semanas, infelizmente, esse medo se confirmou. Lina foi alvo de diversos tipos de transfobias dentro da casa. Parecia que fazia parte do jogo errarem tanto o pronome dela. Doía muito ver alguém com a genialidade e potência de Lina passar por isso. Muita gente aqui fora só entendeu como a transfobia funciona vendo as dores de Lina na televisão. A gente que é transvestigênere, porém, sente isso na pele todos os dias, em todas as interações sociais. Mas essa dor foi potencializada.
Cogitei várias vezes parar de acompanhar o programa. Falei muito disso na terapia. Nem com a palavra ELA, tatuada na testa, a cisgeneridade conseguia respeitar a identidade de Lina. Mesmo com Lina se apresentando como Lina, ainda tivemos que ouvir que tinha gente ali dentro que precisava se esforçar para não errar o pronome dela. Foi a prova de que a tal passabilidade (ideia da cisgeneridade de uma pessoa transvestigênere que pode “se passar” por uma pessoa cis) não nos protege.
Mas Lina não sucumbiu. Encontrou verdadeiras aliadas dentro da casa para se fortalecer. Encontrou em duas mulheres negras, Jessilane Alves e Natália Deodato, também de origem periférica como ela, seu alento. Como toda amizade de verdade, as comadres tinham seus conflitos. E ainda bem. E ainda bem que Lina ainda encontrou acolhimento e afeto em Naiara Azevedo e Lucas Bissoli. E Lina foi leal ao seu grupo.
Com esse grupo de afeto, Lina conseguiu ser apenas Lina. Protagonizou um dos beijos mais bonitos do BBB, se jogou nas festas e nas provas. Infelizmente teve muito azar em muitas provas, ficando ali no “quase” da tão esperada linnderança. Foi em um gesto que fez muita gente aqui, do lado de fora, chorar que ela chegou ao quarto do líder, quando o grupo rival, composto pelos atletas Paulo André e Pedro Scooby e pelo ator Douglas Silva desistiu da prova. Não por dó, mas por saber que Lina precisava disso.
Em um dos primeiros paredões que Lina caiu, foi a menos votada. Só 5,5% do público queria ela fora do programa. Não vou tentar explicar os motivos do jogo que tiraram Lina do BBB, porque não concordo com a narrativa que tem ganhado força nas redes sociais, de que ela teria traído a boa ação dos meninos ao indicar Paulo André ao paredão.
Isso porque eu não acredito que haja uma separação entre o jogo e a vida real. Vivemos em uma sociedade estruturalmente transfóbica, racista, machista e elitista. Um “erro” de Lina na frente de dezenas de câmeras, com milhões de pessoas assistindo, sempre vai ter mais peso do que um erro de um participante cishétero, branco com grana no bolso. Sempre foi assim e no jogo não seria diferente. Não à toa ela foi eliminada em um paredão que tinha dois homens cishéteros e brancos.
Aqui fora, a equipe de Lina, composta apenas por travestis, precisou lidar com questões judiciais, ao lado da advogada Juliana Souza, selecionando as transfobias e ameaças que a cantora sofreu nas redes sociais. Tudo isso foi registrado na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), em São Paulo. Esse é o reflexo do país que mais mata a população trans em todo o mundo.
Mas, apesar disso, ela conseguiu. Fez brincadeiras bobas e gostosas, chegou no top 9 e sempre será lembrada pela história que fez no BBB. O prêmio vai ser o de menos agora, porque (espero) que a carreira dela decole cada dia mais e ela consiga logo triplicar o um milhão e meio que ganharia caso levasse a melhor no reality.
Nada no mundo vai apagar a trajetória de Lina no BBB. A primeira travesti da história do programa de maior audiência da televisão brasileira, com um anúncio muito forte sobre isso, entrou na casa com a camiseta de Anastácia Livre. Em sua festa da linnderança, levou o ballroom (cultura de festas originada em Nova York que serve de refúgio à população LGBT+ e concentra troca de afetos, conscientização, politização, acolhimento e acesso aos serviços de proteção ao HIV, com arte, cultura, dança, criatividade e família) para o horário nobre da televisão brasileira.
Conseguiu pautar, em horário nobre e mesmo sem querer, a importância do respeito às nossas identidades e aos nossos pronomes. Tadeu Schmidt fez questão de dizer isso tudo no discurso de eliminação de Lina. É ela. É a travesti. Sem palavra pejorativa. Ainda bem que era Tadeu o apresentador desta edição, com toda a sensibilidade do jornalista, que é pai de uma adolescente queer.
Lina conseguiu furar a bolha de pessoas trans e pessoas aliadas. Conseguiu impactar muita mãe, pai, tio, tia, avô e avó que passaram a amá-la. O Brasil torceu, sim, para uma travesti. Torceu e aprendeu a amar. Esse avanço não tem mais volta. Aqui fora lutamos muito pela permanência dela. Até mutirão com a vereadora Erika Hilton eu puxei, mas não deu. O que nos conforta é saber o quão gigante é Lina Pereira.
Já falei aqui na Ponte a importância que a Lina tem na minha vida. Foi depois de ver o documentário Bixa Travesty, que conta a vida e carreira de Lina, que eu tive a certeza que eu era um cara trans. Ela também sabe dessa importância. Um mês antes de ela entrar no BBB, quando completei dois anos de transição social, em dezembro de 2021, agradeci pela potência que ela é. Tive essa resposta (com todo aquele toque Linn da Quebrada de escrever e falar com poesia): “gratíssima pelo corpo aberto e resistente na medida não mais que necessária para que houvesse & continue havendo movimento. em nós, para que possamos desatar”.
Sempre em nós, para que possamos desatar, Lina, e agora te agradeço novamente. Por ser potência, por ser coletividade, por ser apenas você e ainda assim conseguir ser todes nós. Hoje, nem eu nem você vamos conseguir entender o impacto dessa história que, mais uma vez, você protagonizou, mas veremos muito em breve como isso tudo impactou mais de nós. Obrigado por tanto, Lina Pereira.
* Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da periferia zona norte da cidade de São Paulo. É autor do livro-reportagem Transresistência: Pessoas trans no mercado de trabalho (Dita Livros) e repórter especializado na editora LGBT+. Foi repórter da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021.