Artigo | Operação Escudo: justiça ou extermínio?

O que uma operação vingança provoca se não transformar agentes da lei nos bandidos que eles querem exterminar e deixar para trás um rastro de sangue e de sofrimento para todas as famílias. Esse bandido bom é bandido morto?

Bandeiras no chão do Smbódromo de Santos (SP) durante protesto contra mortes na Operação Escudo em 6 de agosto de 2023 | Foto: Ailton Martins

Todas as vezes que entrevistei familiares e amigos de pessoas que foram mortas pela polícia, sempre ouvi que a luta deles era em busca de justiça, nunca de vingança. Além de ter aquele sentimento dúbio de como o trabalho poderia contribuir sem revitimizar esses parentes, fico me perguntando: o que é justiça? E o que é fazer justiça?

Pode parecer que entrei numa esfera filosófica que vai chegar a lugar nenhum, mas alguns termos podem ter sentidos diferentes, principalmente, para quem puxa o gatilho e decide instituir uma pena de morte e para quem tem um alvo na pele. 

Em geral, policiais que viraram parlamentares lançam a máxima de que “bandido bom é bandido morto” em casos de crimes cometidos por pessoas que não sejam das forças de segurança pública – e até mesmo policiais na ativa não sentem mais o receio de expor esse tipo de pensamento. Quando um policial é assassinado, é evocada a máxima de “onde estão os direitos humanos?”, como se fosse uma entidade, uma organização, uma pessoa jurídica e não preceitos básicos que, inclusive, o policial deveria garantir. Dessa vez, o secretário de Segurança Pública de São Paulo Guilherme Derrite, durante o velório da soldado Sabrina Freire Romão Franklin, brutalmente assassinada em um latrocínio, menosprezou pesquisadores da área que não são integrantes das polícias ao dizer que não viu, ouviu nem leu “nenhum especialista em segurança pública se manifestar”.

Morte de policiais também é uma questão de direitos humanos. Mas não é abordada da maneira como deveria. E não é preciso necessariamente ser policial para saber disso. Aliás, muitas organizações da sociedade civil buscam estudar e entender o que acontece a fim de também pensar em soluções. Quando um policial é assassinado, o contexto daquela morte e a própria humanidade daquele profissional são ofuscados. A narrativa se torna um ataque ao Estado, que precisa dar uma resposta. A forma como essa resposta é dada, porém, é o que preocupa. 

A morte de um policial aumenta em 125% as chances de um civil ser morto pela polícia na semana seguinte a ocorrência, segundo a dissertação de mestrado Medindo forças: a vitimização policial no Rio de Janeiro (2017), de autoria de Terine Husek Coelho. E São Paulo sabe bem disso: Crimes de Maio de 2006, ataques de 2012, Chacina de Osasco e Barueri, em 2015, e por aí vai. Se antes essas chacinas com indícios de participação de policiais aconteciam por meio de toques de recolher informais, agora o governo paulista as institucionalizou como Operação Escudo, com policiais em serviço. Os 28 mortos em ações da polícia na Baixada Santista após o assassinato do soldado Patrick Reis denotam que houve um aval do comando para isso. 

Veículos de imprensa como a Ponte já denunciaram atuação de grupos de extermínio formados por policiais. Há grupos que atuaram em outros estados, como no Rio de Janeiro, com nomes atrelados a super-heróis, como “Liga da Justiça”. Contudo, não é necessário chegar a esses grupos paramilitares para ver que o extermínio é oficializado pelo Estado. Tanto para quem é morto por um policial quanto para o próprio policial que atira e é substituído nessa equação a cada vez que tomba.

Como mostramos no nosso índice de transparência da letalidade e da vitimização policiais, 17 estados não publicam informações sobre mortes de policiais. Ter acesso a dados qualificados para entender a dinâmica desses casos ainda é uma caixa preta. Isso não só de mortes violentas, como homicídios e latrocínios, mas suicídios também. Se o Estado se preocupa com quem o representa na ponta e está mais suscetível à violência, por que isso é escondido da sociedade? O que é feito para protegê-los? E por que o Estado insiste em operações quando os suspeitos pelos crimes já foram identificados e presos? 

A importância dessas mortes pelo Estado também é dada de forma diferente. O governo estadual disse que em 2023 foram realizadas 38 edições da Operação Escudo “sempre que um policial for alvo de ataque”. Na hierarquia, mortes de policiais em tropa de elite, como a Rota, valem mais do que as dos praças em contexto de “bico”, de assalto ou tentando intervir contra crimes praticados contra terceiros. E isso mostra que discutir condições de trabalho dos policiais, especialmente na folga, não é uma prioridade para a gestão.

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Ao mesmo tempo, o que uma operação vingança provoca se não transformar agentes da lei nos bandidos que eles querem exterminar e deixar para trás um rastro de sangue e de sofrimento para todas as famílias. Esse bandido bom é bandido morto? Penso nas famílias desses policiais que vão ver o nome das vítimas atreladas a chacinas promovidas por outros policiais sem nenhuma reparação. Penso nas vítimas da vingança, a população preta, pobre e periférica (que também está presente nos quadros da polícia) vendo a história se repetir sem ter conseguido limpar os nomes dos que foram assassinados e de serem reparadas.

Jeniffer Mendonça é repórter da Ponte Jornalismo

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