Como o isolamento social no Jardim Marilena se mostra utópico e prova que a medida só funciona mesmo para quem tem o privilégio da escolha
Entre ruas estreitas e construções modestas e verticalizadas, inacabadas ou em processo de expansão, a vida permanece acontecendo. Crianças jogam bola, andam de bicicleta e soltam pipa. Pessoas de todas as idades reúnem-se em frente às casas, sentam-se nas calçadas e conversam sobre todo tipo de assunto. Há quem prefira comentar sobre a última live do artista predileto, outros relembram os tempos de escola. O certo é que nem mesmo o dia nublado e pouco favorável para o desenrolar de prosas como as citadas, impede os moradores do periférico Jardim Marilena, em Guarulhos, na Grande São Paulo, de seguirem normalmente suas rotinas. Apesar da pandemia.
No relógio o ponteiro se aproxima das 16h e, na principal rua de comércio do bairro, lojas dos mais variados segmentos continuam em funcionamento.
Em algumas é possível avistar placas improvisadas de papel sulfite e caneta fluorescente, informando que só é permitido a entrada de um cliente por vez. No supermercado local, o alto-falante alerta, em respeito ao decreto municipal, que para permanecer no estabelecimento é necessário utilizar máscaras de proteção. Apesar de o comunicado ressoar repetidamente, algumas pessoas preferem colocá-las no queixo ou pendurá-las na orelha.
A presença de um vírus invisível e altamente letal parece, a princípio, não ser tão assustador entre aqueles que transitam nas vias da periferia guarulhense.
O vendedor de vassouras, que passa de porta em porta oferecendo o utensílio, utiliza apenas um óculos de sol. Três jovens, parados em uma esquina, conversam animadamente sem fazer uso do equipamento de proteção. No Jardim Marilena, a movimentação intensa e desprotegida dos moradores comprova que as medidas de isolamento social na periferia não foram satisfatórias.
A apenas alguns quilômetros de distância, a paisagem muda abruptamente. Com avenidas largas e arborizadas, além dos edifícios de alto padrão, o Jardim Cidade Maia é o completo oposto do quase vizinho Marilena. O bairro, cuja renda per capita é uma das mais altas do município, abriga os principais estabelecimentos comerciais e importantes áreas de lazer. Se a diferença na infraestrutura do distrito é perceptível para qualquer pessoa, o comportamento de quem vive naquela região também é.
Na avenida Paulo Faccini, importante endereço da cidade, não havia a agitação habitual. O fluxo de veículos no final da tarde de um sábado era pouco intenso nos pontos que costumam ser os mais movimentados. Na calçada do maior parque urbano de Guarulhos, o Bosque Maia, os populares trailers de cachorro-quente não estavam presentes e tampouco os frequentadores. Na fachada dos restaurantes destacam-se os cartazes anunciando que os pedidos podem ser feitos via delivery.
Segundo dados divulgados pela Prefeitura de São Paulo, a letalidade do novo coronavírus é dez vezes maior em bairros menos abastados. A doença, que chegou ao país infiltrada no organismo daqueles que estão no topo da pirâmide, mata de forma descomunal quem historicamente sempre esteve na base.
Nas comunidades, a população é cotidianamente exposta a riscos que colocam em jogo a própria sobrevivência. Uma parcela significativa dos moradores não tem alternativa: é necessário se deslocar em direção às áreas centrais, onde estão concentradas fábricas, escritórios e centros comerciais, para exercer suas funções. Aqui não tem escolha, não tem home office. O patrão não pode esperar pois tempo é dinheiro.
Evitar as aglomerações conforme recomenda os especialistas e a Organização Mundial da Saúde (OMS), também é uma tarefa quase inalcançável. Isso porque, de acordo com um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), as mudanças operacionais implantadas por governos estaduais e municipais no transporte público, aumentaram o risco de contágio entre os moradores das periferias.
Esse grupo, por exemplo, leva cerca de três horas para ir e voltar do trabalho diferentemente daqueles que vivem nas regiões centrais. Diante desse cenário, estatísticas recentes do levantamento elaborado pelo DataFavela, instituto de pesquisa associado à Central Única das Favelas (CUFA), revelam que 54% da população periférica tem medo de perder o emprego e 72% afirma que não possui recursos para adquirir o básico caso fiquem desempregados.
O coronavírus surgiu inesperadamente e infiltrou-se nas vilas, filas e vielas. Em Maias e Marilenas. Apresentou-se sem nenhum modo. Deixou explícito os riscos que trouxe consigo e intensificou velhos conhecidos de uma população que historicamente vive diante de uma violência estrutural. O vírus letal escancarou as lacunas de uma sociedade que carece, há décadas, de um antídoto contra a desigualdade social.