Em 2023, foram dois assassinatos por dia de crianças e adolescentes no país, segundo o Unicef. E o Brasil ainda se recusa a ver o racismo por trás dos alvos preferenciais da violência estatal: pobres, quase sempre pretos
2.427 crianças e adolescentes mortos pela ação das forças estatais de segurança nos últimos três anos. Este número equivale a duas mortes por dia. Todo dia, durante três anos, duas crianças ou adolescentes foram tirados de nós pelo Estado. O estudo, feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Fórum Brasileiro da Segurança Pública, indicou que uma a cada cinco crianças e adolescentes assassinados ano passado no Brasil foi vítima de ações policiais.
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Li um comentário essa semana sobre uma outra reportagem publicada na Ponte que me chamou a atenção. Ao ler sobre a vitória judicial de um rapaz que havia sido agredido em um supermercado, o “ser humano” disse: “Ah, eu entro no supermercado e nada disso acontece comigo”. Não duvido que este “ser” diria o mesmo dessas quase 2.500 crianças e adolescentes mortos pela polícia. “Mas o que eles fizeram para serem mortos?”, “se estivessem em casa não tinham morrido”, “certeza que estavam fazendo coisa errada”. O errado é sempre quem morre, pois nossas polícias estão investidas de um manto de infalibilidade.
A bala ou o coturno encontrar um corpo-criança deveria ser um crime por si só. Um crime contra nosso futuro enquanto sociedade porque, não se engane, a cada morte de criança ou adolescente é mais uma vez que falhamos em protegê-los. Sim, falhamos no mais coletivo dos plurais. Somos responsáveis pela defesa da vida e dos sonhos dessa galera e estamos falhando miseravelmente. Tocamos a vida como se nada tivesse acontecido. O dito popular diz que quem cala consente. Nosso silêncio nos torna cúmplices.
Das 15 mil mortes violentas intencionais ocorridas nesse triênio, mais de 9 mil foram de crianças e adolescentes negros. 9 mil futuros pretos roubados no mais absoluto silêncio. Estamos em um país onde, em qualquer faixa etária e tipo de crime, crianças negras serão os alvos majoritários – vidas já vulneráveis atravessadas pelo racismo e pela violência, par sistemático neste país, algo que vivenciamos no nosso dia a dia na Ponte e que foi reiterado por Ashwini K.P., relatora especial da ONU sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, em visita ao Brasil.
Damos preferência a políticas que colocam a polícia dentro da escola e clubes de tiro em suas cercanias àquelas que possam resguardar futuros, estimular sonhos, oportunizar uma existência segura, assegurar acessos a direitos, incluindo o direito de sonhar. Preferimos censurar livros e professores a estimular o pensamento e a imaginação. Preferimos reduzir a maioridade penal a políticas públicas de esporte, cultura e educação. E somos uma sociedade que finge ser cristã e se orgulha com pompa de defender a vida. Mas, quais vidas defendemos? Quais são os corpos que importam?
Os números que trouxemos neste texto e na reportagem publicada em nosso site não são apenas números. São as histórias que ninguém vê timeline dos influenciadores, os nomes que não se ouvem nos podcasts, os rostos que jamais terão destaque no telejornal noturno. Quando são vistos, morrem de novo na próxima trend, são assassinados novamente no próximo comentário que corrompe sua presunção de inocência. Este é o não futuro que legamos à infância e à adolescência.
Este artigo foi publicado originalmente na newsletter semanal da Ponte: clique aqui para assinar e receber textos exclusivos, reportagens da semana e mais na sua caixa de e-mail