Artigo | PM de São Paulo precisa ser parada e Derrite demitido

    Explosão de violência da PM nos últimos meses é consequência de uma situação nova, em que a corporação se transformou num grupo político autônomo e sem qualquer controle civil

    “Surtos” de violência policial, esses períodos em que a PM mata e esculacha mais do que de costume, não são exatamente novidade no estado de São Paulo. Nos últimos 30 anos, foram muitas as vezes em que o governo paulista se viu obrigado a tomar alguma medida para colocar um freio em suas polícias estaduais.

    Não é nenhum elogio aos nomes que vou citar. Longe disso, alguns tiveram de conter “surtos” de violência estimulados por sua própria política de (in)segurança pública. Outros foram, eles mesmos, entusiastas da violência policial até o dia em que a conta chegou. Nenhum conseguiu resolver o problema crônico e estrutural da violência de Estado em São Paulo.

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    Em 1997, o caso da Favela Naval assustou o país inteiro com imagens de policiais militares extorquindo, torturando e matando pessoas nos achaques diários que realizavam em Diadema (SP). Depois do assassinato de Mario José Josino, o escândalo de violência fez com que Mário Covas mudasse protocolos de sua PM. Sejamos justos, crescido em um finado PSDB que ainda se lembrava de ter nascido da luta democrática, Covas vinha tentando implantar medidas de controle sobre as polícias desde 1995. Nenhuma foi realmente bem-sucedida.

    PM joga homem de uma ponte sobre um córrego na madrugada de segunda-feira (2), após abordagem da Rocam em São Paulo | Foto: Reprodução

    Alckmin estava disputando a presidência em 2006 quando a PM matou 425 pessoas em 9 dias sob a justificativa oficial de que agia para retaliar o PCC. Foram os chamados “Crimes de Maio”. Jovens negros foram abordados e assassinados aleatoriamente nas periferias. Seus algozes, até hoje, seguem impunes. Há um senso comum, principalmente no meio policial, de que Claudio Lembo, governador em exercício, interveio diretamente para conseguir uma “trégua” na matança.

    A “guerra contra o crime organizado” justificaria mais 6 meses de mortes em 2012, terminando com um aumento de 40% nos assassinatos cometidos por policiais. Desta vez, ao contrário de 2006, a grande imprensa não apoiou a violência de forma incondicional. Com a pressão, o governador José Serra mudou protocolos de investigação em homicídios envolvendo policiais e o debate pelo fim dos “autos de resistência” ganhou força na sociedade.

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    João Doria foi eleito em 2018 para o Palácio dos Bandeirantes tendo a violência policial como plataforma política. Com o “BolsoDoria”, os bandidos iriam direto para o cemitério. Mas sua cruzada era mesmo contra a periferia em geral. As “Operações Pancadão” contra bailes funk eram uma tragédia anunciada. No fim de 2019, quando a PM batia recordes de assassinatos, as imagens do Massacre de Paraisópolis colocaram o governador contra a parede. No ano seguinte, Doria se viu obrigado a implementar câmeras corporais na PM para conter o mais novo “surto” de violência.

    Vejam, todos esses governadores têm sua parcela de culpa na violência policial, assim como o Ministério Público e parte da imprensa. Não há nenhum herói nessa história paulista. Mas mesmo uma figura execrável como Doria se viu obrigado a lidar com as consequências de seus atos e adotar alguma política de freio ao ímpeto violento da PM.

    Aliás, converse com alguns policiais e você vai compreender como essa dinâmica entre governo e polícia está na raiz da PM, coletivamente, ter criado um grande sentimento de ranço e insatisfação com o PSDB em SP. Ao longo de três décadas, este “morde e assopra” criou nas polícias o ressentimento de que o “tucanato paulista” pedia sangue, mas fugia da responsabilidade quando a conta chegava.

    Criou-se um sentimento de que, na hora H, a responsabilidade recaía toda sobre os policiais, embora a realidade mostre que tampouco os policiais foram responsabilizados por seus crimes ao longo dos últimos anos. Estima-se que menos de 2% dos policiais que mataram pessoas na cidade de São Paulo tenham sido condenados entre 2015 e 2020.

    Beatriz Rosa é acolhida por parentes em enterro de seu filho Ryan, de 4 anos. Ritos fúnebres foram acompanhados por viaturas policiais | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    A vez de Tarcísio e Derrite

    Esse sentimento é uma das bases para que a PM paulista tenha procurado se organizar e conquistar maior autonomia política nos últimos anos. Uma autonomia que se materializou com nome e sobrenome: Guilherme Derrite, ex-integrante da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), eleito deputado federal em 2018 e 2022 e, desde 2023, nomeado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) para ser o Secretário da Segurança Pública de São Paulo.

    Desde o início, como escrevi neste mesmo espaço, Derrite se comportou, na verdade, como um “anti-secretário”. Antes de eleito, Tarcísio não escondeu que sua intenção era extinguir a pasta da segurança pública, como ocorreu no Rio de Janeiro, eliminando intermediários civis entre o governo e as polícias. Pegou mal e Tarcísio recuou na forma, mas não no conteúdo. Na impossibilidade de eliminar intermediários, colocou um oficial da ROTA nesse papel.

    Derrite passou a atuar por uma autonomia cada vez maior da Polícia Militar paulista em relação à sociedade civil e por mais poderes para a instituição. Pela primeira vez na história ocupando a Secretaria, a PM ficou sem freio algum. Com Tarcísio e Derrite, oficiais que apoiavam o uso de câmeras corporais e eram contra a “Operação Escudo” perderam posições e hoje estão ameaçados por um novo plano de carreira que pode aposentar compulsoriamente a maioria, abrindo espaço para a promoção de oficiais mais próximos ao secretário.

    Com poder aumentado e carta branca para agir, a PM paulista não tem se importado em ampliar suas competências. A exclusão da Polícia Civil da “Operação Fim da Linha”, os informes sem quaisquer provas divulgados pelo Centro de Inteligência da PM (inclusive para prejudicar adversários em período eleitoral), a permissão para a PM lavrar termos circunstanciados, o aumento expressivo de policiais militares realizando “operações delegadas” na segurança municipal da capital.

    Casos e mais casos que mostram a PM paulista se apossando da máquina pública para agir como melhor entender. Era inevitável que tanto poder, tanta autonomia, resultasse em ainda mais banho de sangue.

    Familiares e amigos dos jovens mortos pela PM no “Massacre de Paraisópolis”, ocorrido há cinco anos em repressão policial a baile funk, protestam em SP no domingo (1) | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Uma PM autônoma e descontrolada

    A PM autônoma de Tarcísio e Derrite é a PM que, em fevereiro, na baixada santista, fuzilou Leonel, um homem de 36 anos com deficiência, que andava de muletas, e, dez meses depois, subiu a mesma comunidade para matar seu filho, Ryan, de apenas 4 anos na mesma semana, intimidou, com viaturas na porta do cemitério, os familiares e amigos que honravam o enterro da criança.

    Esta PM autônoma, que deixou 56 mortos apenas na Operação Verão em nome de um suposto combate ao crime organizado, matou 460 pessoas em 2023 e, até o momento, outras 673 em 2024, ao mesmo tempo em que ataca propostas de incentivo às câmeras corporais no Congresso Nacional por meio de sua própria bancada policial.

    É a PM que mata um homem pelas costas no estacionamento do OXXO, que mata um estudante de medicina desarmado no salão de um hotel, que atira um homem de uma ponte sem qualquer motivo enquanto tenta acabar com mais um baile funk na base da porrada.

    É também a PM que usa viaturas para tirar rachas pela cidade sem se importar com a gravação de suas próprias câmeras, que tem membros investigados pelo espetacular assassinato no aeroporto de Guarulhos, que tem membros na segurança do governador sendo presos por envolvimento com o PCC.

    O aval de uma ‘não-secretaria’

    Já são dois anos de explosão de casos de violência policial no estado de São Paulo, de achaques à comunidade de Paraisópolis, do mais profundo terror de Estado na baixada santista, de números estratosféricos de vidas tiradas por policiais militares, mas, dessa vez, ao contrário de outras, não há nenhum sinal por parte do governo de que a matança vai ser estancada.

    O governador Tarcísio debocha, diz para os paulistas procurarem a “Liga da Justiça”. Derrite diz que a morte de uma criança de 4 anos é puro “vitimismo barato”. Com o aval de uma “não-secretaria”, a PM segue matando e esculachando. Os freios primários à violência policial já deram todas as mostras de que resolveram deliberadamente não funcionar.

    No Brasil pós-2018, talvez esteja mais difícil acreditar que um movimento desses seja freado por mero repúdio das demais instituições. É preciso haver uma concertação democrática, uma composição de atores com poder e vontade para fazer o que tem que ser feito antes que as coisas cheguem a um ponto de não retorno.

    Partidos, movimentos sociais, Ministério Público, Poder Judiciário, imprensa, todos precisam unir esforços em ações efetivas que contenham tanta violência. Em outros pesos e outras medidas, estamos diante do mesmo debate que se coloca, em âmbito federal, sobre as Forças Armadas.

    E, como no âmbito federal, afastar as lideranças deste movimento violento dos espaços de poder deve ser um bom pontapé inicial. É inadmissível que São Paulo continue tendo o Capitão Guilherme Derrite à frente da Secretaria de Segurança Pública. Tirá-lo do poder é questão democrática e humanitária. E não fazê-lo é um risco com o qual não serão apenas os paulistas que terão de lidar num futuro próximo.

    Almir Felitte é advogado, mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP) e autor do livro “História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?” (Autonomia Literária, 2023)

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