Artigo | PM mineira vê censura, mas é cega para violência contra mulheres no carnaval

    Policiais não pensaram duas vezes em intimidar protestos contra o presidente Jair Bolsonaro (PSL), mas atuação ostensiva não evitou morte, estupro e esfaqueamento

    PMs questionaram críticas políticas de foliões no carnaval | Foto: Divulgação/PMMG

    Nos últimos anos o carnaval de Belo Horizonte ganhou uma cara nova. Os foliões que escolhem a capital mineira para se divertirem nessa época do ano aproveitam centenas de blocos pela cidade. O que era apenas um bonito desfile de escolas de samba na Avenida Afonso Pena, centro da capital mineira, hoje se tornou algo muito maior.

    O evento se transformou num verdadeiro e importante ato político e conquistou ainda mais quem já amava a terra do pão de queijo. Seja no centro, na zona sul, norte, leste, oeste, nos becos e vielas das favelas… Têm fervo. E não é pouco. As ruas e os corpos foram tomados por muitas fantasias, purpurinas, sorrisos e sensação de liberdade. Ao olhar toda essa cena, a vontade era de cantar eternamente a música ‘Baianidade Nagô’. Quem não queria que a paz vencesse a guerra e viver fosse só festejar? Isso é a essência do carnaval sendo representado em blocos afros, LGBTIQ+, feministas e de outras lutas sociais e políticas. O brasileiro estava precisando desse astral, mesmo que tenha sido durante poucos dias em meio há tantos meses sombrios que já se passaram e que estão por vir.

    De fato, o carnaval de Belo Horizonte se tornou um dos melhores do país, mas nem tudo são flores. Para nós, mulheres, realmente existem muitos espinhos no meio desse jardim. Na data em que a sensação de liberdade fica mais evidente no ser humano, já prevíamos o que poderia acontecer. Tanto é que, antes e durante a folia aconteceram diversas campanhas contra assédio em todo o país. É essencial as marcas, as autoridades, a mídia e a sociedade num todo se posicionarem contra qualquer tipo de violência. Corpos femininos não são como carne no açougue, onde pessoas chegam, escolhem e levam para casa. Roupas curtas não são um convite para transar. Se a mina não quer, nada tem que acontecer.

    Parece simples, mas homens e mulheres machistas – sim, mulheres também assediam outras mulheres – não enxergam dessa forma. Durante os dias de carnaval houve muitas denúncias nas delegacias de Belo Horizonte, mas três casos extremamente violentos ganharam destaque nos noticiários por terem acontecido no mesmo local. Três mulheres foram covardemente agredidas na Praça da Estação durante alguns shows que aconteceram no palco da região central de BH.

    O sangue dessas vítimas, a solidão e as vozes silenciadas marcaram o carnaval de cada uma delas. Sábado (2/3), domingo (3/3) e terça-feira (5/3) foram dias cruéis para essas mulheres. Mas ainda assim a festa não foi interrompida, o show tinha que continuar. A Polícia Militar e a Prefeitura de BH estavam mais preocupados em censurar manifestações políticas. Isso “com certeza” diminuiu bastante a criminalidade. Prioridades.

    No sábado, segundo a Polícia Militar, uma jovem de 19 anos denunciou que havia sido estuprada por três homens. Ela relata que ao se distanciar dos amigos para ir ao banheiro, um homem com tatuagem tribal e outros dois comparsas a agarraram e a mantiveram presa enquanto ele a violentava sexualmente. A vítima relatou que uma mulher presenciou o ocorrido, mas se negou a prestar socorro. A jovem foi levada para o hospital Odilon Behrens e recebeu os primeiros cuidados. A denúncia do caso foi encerrada na Delegacia da Mulher e a polícia não conseguiu identificar os suspeitos do crime.

    Na madrugada do último domingo, uma mulher de 32 anos foi encontrada inconsciente e com muito sangramento na região do abdômen por pessoas que passavam pela praça no momento. Ao ser encaminhada para o hospital Odilon Behrens, foi constatado que a vítima havia sido esfaqueada na barriga.

    Na terça-feira, de acordo com o Corpo de Bombeiros, uma brigadista que estava trabalhando no evento encontrou o corpo de uma mulher na Praça da Estação com sinais de estrangulamento. Durante 20 minutos, profissionais da saúde tentaram reanimar a vítima, mas infelizmente ela estava morta antes mesmo de receber os primeiros socorros.

    Todos os casos aconteceram na Praça da Estação. E o que a polícia fez para evitar que outras mulheres fossem vítimas dessa violência? Vale ressaltar que a localidade em que os crimes aconteceram era um dos pontos mais movimentados durante o carnaval. A circulação de pessoas era de quase 24 horas, devido ao metrô (logo em frente) funcionar até 2 horas e muitos foliões chegarem cedo na região central para acompanhar outros blocos.

    Importante reforçar que, mesmo durante o dia, o policiamento em muitas ruas era praticamente zero. Após o encerramento dos blocos, os foliões que queriam ficar nas ruas não tinham muitas opções de atrações culturais, o que querendo ou não acaba dando espaço para alguns conflitos. Pouca informação, ônibus circulando em ruas muito desertas, policiamento mais intenso somente em locais em que havia uma grande aglomeração de pessoas… Tudo isso facilita para que outras mulheres sejam violentadas e assassinadas. Se aconteceu num local movimentado como a Praça da Estação – que recebeu milhares de pessoas todos os dias de folia – podemos imaginar o que deve ter acontecido nessas localidades com pouca circulação de pessoas e onde eram as únicas opções de trajetos para os ônibus.

    A pauta Segurança no Carnaval é uma urgência. Mesmo com todos os casos citados acima, o evento na praça não deixou de acontecer e não recebeu um cuidado maior dos responsáveis pela segurança do local. É o momento de uma pressão popular. Não queremos que uma cidade tão maravilhosa, com moradores hospitaleiros, engajados politicamente e culturalmente seja conhecida como o ‘território onde mulheres não podem circular livremente no carnaval.’

    Casos como esses não acontecem somente em grandes eventos. Segundo o Relógio da Violência, a cada 2 segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil. Em casa, no trabalho, nas ruas… O ciclo se repete. Como dizia Carolina Maria de Jesus: “O mundo modifica para os que reagem”. Precisamos reagir e proteger nossas mulheres. Sigamos na luta contra os estereótipos de gênero e as desigualdades nas relações de poder entre homens e mulheres.

    A Ponte solicitou posicionamento da PMMG sobre os casos ocorridos no carnaval, mas a corporação não respondeu até a publicação do artigo.

    * Gabi Coelho é repórter e coordenadora do jornal comunitário Voz das Comunidades, no Rio de Janeiro. Comunicadora social no Observatório do Funk, em Minas Gerais, e estudante de jornalismo na PUC Minas.

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