Refresh

This website ponte.org/artigo-precisamos-falar-da-revista-intima-vexatoria/ is currently offline. Cloudflare's Always Online™ shows a snapshot of this web page from the Internet Archive's Wayback Machine. To check for the live version, click Refresh.

    Artigo | Precisamos falar da revista íntima vexatória

    STF retoma hoje (27/3) julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário que trata da ilegalidade de provas obtidas mediante revista íntima vexatória nos presídios —procedimento que submete familiares de presos a situações degradantes

    Manutenção da revista íntima vexatória é uma forma de penalizar familiares das pessoas presas por simplesmente tentar manterem seu vínculo | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    Está marcada para esta quinta-feira (27/3), às 14 horas, no Supremo Tribunal Federal (STF) a retomada do julgamento do ARE 969520 (Agravo em Recurso Extraordinário) — que trata da ilegalidade de provas obtidas mediante revista íntima vexatória nas unidades prisionais de todo o país.

    O processo analisa a decisão tomada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que considerou a revista vexatória contrária aos princípios constitucionais da dignidade humana e da intimidade e, portanto, determinou ilegais as provas obtidas mediante sua prática.

    Leia mais: Artigo | Constrangimento, vergonha e humilhação

    A revista íntima vexatória é um procedimento que consiste em obrigar pessoas a se desnudar e ter seus órgãos genitais inspecionados por agentes penitenciários, sendo este procedimento obrigatório para que familiares, companheiros e cônjuges de pessoas privadas de liberdade possam fazer visitas a estabelecimento penais na maioria dos estados brasileiros.

    Quando tratamos desse assunto, é importante nos lembrarmos dos alvos da prática da revista íntima vexatória. Se o sistema prisional brasileiro possui uma clientela específica: homens pretos, jovens, periféricos e de baixa escolaridade, tem-se que familiares dessas pessoas também apresentam diversos marcadores sociais de diferença.

    Tratam-se de visitantes mulheres, negras, periféricas e com mais de 40 anos de idade que são reiteradamente sujeitas a práticas invasivas e desumanas simplesmente por tentarem exercer um direito. O resultado? De acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) obtidos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP), a cada cada 10 mil visitantes que são submetidos à revista íntima vexatória, algum objeto proibido é encontrado duas vezes, gerando uma taxa de apreensão de 0,023%.

    Práticas que violam a dignidade

    É importante ressaltar que revista íntima vexatória é diferente da mera revista pessoal, que é aquela inspeção feita em caráter de segurança, comumente em aeroportos e outros locais em que é necessário maior controle de circulação de objetos ilícitos. Na revista pessoal, há uma série de requisitos procedimentais que visam impedir que as pessoas revistadas sejam submetidas a situações degradantes, como o uso de scanners corporais, detectores de metais etc.

    Já a revista íntima vexatória ocorre quando práticas mínimas de preservação da integridade física, psíquica e moral das pessoas revistadas não são adotadas. São práticas que violam a dignidade humana e integridade das mulheres principalmente, mas também de homens e crianças que são forçadas/os a passar por esses procedimentos a fim de manter os laços com seus entes queridos.

    O Labeling Approach, ou teoria do etiquetamento social, é uma teoria criminológica dos anos 1950 que se baseia na ideia de que o criminoso é socialmente construído. A sua identificação na sociedade independe da taxa de incidência real de criminalidade em determinado grupo social, baseando-se mais no tipo de sujeito que a sociedade enxerga como criminoso. Segundo essa teoria, o comportamento criminoso só se torna criminoso porque os mecanismos de controle social assim o rotulam.

    Leia mais: Revista vexatória é ‘estupro inconstitucional’ e deve ser proibida, defendem especialistas

    Com base nela, é de se esperar que numa realidade como a brasileira, marcada pelo racismo e pelo machismo, resquícios vívidos de uma sociedade escravagista e patriarcal — reciclados e ressignificados no capitalismo para atender a uma divisão social do trabalho que permite a manutenção das desigualdades econômicas e sociais — é de se esperar que o etiquetamento social defina que os corpos vistos como criminosos são majoritariamente os de jovens negros periféricos.

    Como as mulheres são base social e econômica da reprodução da própria classe trabalhadora, embora não sejam atingidas pelo etiquetamento social da mesma forma que os homens, são elas (e, em sua maioria, mulheres negras) que compõem as filas de revista íntima vexatória do sistema prisional. Elas são, muitas vezes, as responsáveis pela própria manutenção da vida material de seus familiares presos, dada a precariedade das instalações e condições do sistema prisional, mas também são elas quem costumam ser isoladas de seu convívio social quando se encontram em situação de cárcere.

    Pena que ultrapassa a pessoa

    É princípio base do direito penal a individualização das penas, a ideia de que a pena imputada a alguém não deve ultrapassar a sua pessoa. Vê-se, no entanto, que não é isso que ocorre na realidade brasileira. A revista íntima vexatória é degradante, desumana, inadequada e desnecessária como mecanismo de controle de circulação de objetos ilícitos para dentro das unidades prisionais — e a manutenção de sua existência é uma forma de penalizar familiares das pessoas presas por simplesmente tentar manterem seu vínculo, contribuindo para a estigmatização social que elas já sofrem.

    O etiquetamento social de grupos vulneráveis e marginalizados como possíveis criminosos faz com que essas mulheres sejam enxergadas pelo ambiente prisional como traficantes em potencial que devem ter seus corpos constantemente vigiados e violados para se manterem na linha, mesmo que a princípio nenhuma pena tenha recaído sobre elas.

    Leia mais: Procuradoria Federal pede fim da revista vexatória em todos os presídios do país

    A revista íntima vexatória e sua continuidade nos estabelecimentos prisionais brasileiros vai de encontro à própria Constituição da República, que estabelece em seu artigo 5°, inciso III, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante. A flagrante inconstitucionalidade do procedimento independe da disponibilização de um agente penitenciário do mesmo sexo ou de um médico para sua realização. Sua inconstitucionalidade provém de sua própria forma: despir-se para que um agente de segurança vasculhe suas cavidades corporais é, por si só, tratamento desumano e degradante.

    Como se não bastasse a Constituição, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), da qual o Brasil é signatário, estabelece, em seu artigo 5°, o direito à integridade pessoal: define expressamente que a pena não pode passar do apenado, que ninguém deve ser submetido a tratamento cruel ou degradante e que deve ser respeitada integridade física, psíquica e moral da pessoa humana.

    Inconstitucional e inadequada na prática

    Conforme nos indica o art. 157 do Código de Processo Penal brasileiro, qualquer prova obtida por meio de violações das normas constitucionais ou legais deve ser descartada por ser inadmissível, o que reflete exatamente o caso da revista íntima vexatória. Uma vez que não há fundada suspeita que permita a negação de direito constitucional expresso no art. 5º, X como inviolável, tal qual é a intimidade.

    O sopesamento tipicamente realizado para a adequação entre normas constitucionais opostas há de ser feito a partir do princípio da proporcionalidade, constituindo-se em 3 partes: a) Adequação; b) Necessidade; c) Proporcionalidade em sentido estrito. O que nos leva a refletir se, no suposto conflito entre segurança pública e garantia da dignidade da pessoa humana, seria adequado, necessário e estritamente proporcional a realização de revista íntima vexatória.

    Leia mais: A rotina das revistas vexatórias na Fundação Casa

    De início a medida se mostra inadequada na prática, pois essa forma de humilhação é aplicada mesmo que seja possível utilizar scanners e outras tecnologias para se fiscalizar a entrada de familiares nos presídios, sendo portanto uma violação inaceitável aos direitos dessas pessoas, pois o Estado possui condições para garantir a realização de visitas seguras de outros modos. Nem há, então, de se falar em proporcionalidade de tal medida — uma vez que não atinge nem o critério de adequação, revelando-se apenas mais uma forma bárbara com a qual o Estado pune a camada mais vulnerável e submetida ao seu poder de toda sociedade.

    Inviável economicamente

    Existem preocupações de cunho fiscalista sobre a onerosidade excessiva da aquisição de aparelhos de scanner para a fiscalização dos ingressantes no sistema prisional, o que a princípio não deveria ser central à discussão da suprema corte nacional, que possui a função de garantir a supremacia das normas e princípios constitucionalmente estabelecidos.

    Porém, a tese favorável à admissão do recurso, propõe medida que, além de violar direitos fundamentais, na prática pode representar gastos muito superiores a longo prazo, pois prevê que toda revista íntima deverá ser realizada por um médico de mesmo sexo da pessoa revistada — o que supõe que em dias de visita deverão estar presentes pelo menos dois profissionais médicos em cada unidade prisional para a possível realização de revista íntima em cada pessoa analisada como suspeita pela polícia penal.

    Dessa forma, a suposta economicidade da manutenção da revista vexatória se torna apenas pretexto para a continuidade da violação sistemática de familiares das pessoas presas.

    Críticas da CNBB

    Na doutrina social da igreja, vê-se a centralidade que a dignidade humana ocupa, uma vez que o corpo representa a sacralidade à imagem e semelhança de Deus. Sobre isso, o Papa Paulo VI disse, em discurso proferido para a Assembleia Geral da ONU em 1965, que: “A uma igualdade no reconhecimento da dignidade de cada homem e de cada povo, deve corresponder a consciência de que a dignidade humana poderá ser salvaguardada e promovida somente de forma comunitária, por parte de toda a humanidade”.

    Assim, fica explícito que o entendimento da Igreja Católica a respeito dos direitos humanos e da dignidade inerente à pessoa humana vai no sentido de que a segunda deve ser sempre buscada de forma comunitária, sendo uma luta de toda a humanidade.

    A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) já se manifestou nesse sentido, falando especificamente contra a revista vexatória: em 2013 o regional sul da CNBB enviou carta ao governo de São Paulo condenando a prática, e em 2014 o Conselho Episcopal Pastoral da CNBB aprovou nota contrária ao procedimento. A revista íntima vexatória afronta a dignidade da pessoa humana e, como tal, é diametralmente oposta ao que prega a Igreja Católica e seus ensinamentos.

    Frente a esse cenário, é impossível não concluirmos que a admissão da revista íntima vexatória se mostra medida desproporcional e ineficaz à garantia da segurança pública, além de, na prática, revelar-se uma medida adotada somente para vitimizar e violar os corpos de familiares, companheiras e amigas de pessoas presas em exercício de seu direito de visitá-las — causando danos psicológicos e traumas profundos a uma parcela já vitimizada pelo Estado: mulheres negras e periféricas.

    Irmã Petra Pfaller é coordenadora nacional da Pastoral Carcerária. Isadora Meier é assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional. Leonardo Damasceno e Heloísa Moriyama são estagiários jurídicos da Pastoral Carcerária.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    Inscrever-se
    Notifique me de
    0 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários

    mais lidas

    0
    Deixe seu comentáriox