A transformação de Major Olímpio, um político ponderado que virou sucesso nas urnas após abraçar a intolerância, é um retrato da atual tragédia brasileira
Quando falo com estudantes de jornalismo, volta e meia um deles me pergunta qual foi a cena mais chocante que já vivenciei na profissão. Como fui repórter policial, teria muitas opções para escolher. Já pisei em muito sangue de chacina, andei no rabecão do IML e vi corpos destroçados de diferentes maneiras. Numa cena de crime, quase tropecei num pedaço de gengiva caído no chão, com alguns dentes ainda grudados. Mas a dor dos corpos vivos é sempre muito pior. Faria mais sentido mencionar o desespero sem fim que é o velório de um jovem. O choro de uma criança no corredor frio de um tribunal após a leitura de um veredito. A triste revolta resignada das famílias expulsas de casas debaixo de bomba e gás lacrimogêneo, um filho num braço e no outro uma mala com tudo o que lhe restou da vida.
Tudo isso dói, tudo isso marca. Mas nada me impressionou mais do que uma cena sem lágrimas nem sangue, ocorrida em 11 de junho de 2016, um sábado, diante do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual paulista, no bairro do Morumbi, protagonizada por uma gente branca, elegante e horrivelmente sincera.
Leia também: O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil
Fazia nove dias que os policiais militares do bairro haviam matado uma criança negra de dez anos, Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira. De bermuda, blusa e chinelo, Ítalo havia pulado o muro de um condomínio, ao lado de um amigo da mesma idade, e furtado um carro. Não estava armado, segundo o Ministério Público. Mesmo assim, a Polícia Militar o caçou até matá-lo com um tiro no olho esquerdo. Após executar uma criança, os PMs ainda teriam agredido e ameaçado outra, o amigo de Ítalo, de 11 anos, para forçá-lo a inocentá-los em um vídeo gravado ilegalmente.
Pois na semana seguinte, naquela manhã de sábado de frio e sol, um grupo de moradores do Morumbi, quase todos brancos, resolveram fazer um ato de apoio aos policiais que haviam matado aquela criança. Penso que a cena foi tão marcante para mim porque gente branca, como eu, muitas vezes não tem olhos para ver o racismo acontecendo diante de si. Naquela ocasião, porém, o racismo era tão evidente que era como se desse para pegá-lo com as mãos. Os brancos ali reunidos, com seus casacos de pele e cartazes pela paz, nem conseguiam ver um ser humano no corpo negro de Ítalo. Ninguém se referia a ele como uma criança, ou menino. Era um “bandido” e estavam ali para celebrar sua morte. “Não espera bandido atirar, não, mete bala e mata, mata!”, pediu um dos manifestantes brancos aos policiais reunidos diante do Palácio, pertencentes ao 16º Batalhão da Polícia Militar Metropolitano, o mesmo que havia matado Ítalo.
Um dos que apareceu naquela manhã para festejar a morte da criança foi o então deputado federal Major Olímpio, o mesmo que morreu nesta semana, vítima de Covid-19, e que mereceu toda sorte de obituários elogiosos, inclusive de jornalistas que fizeram questão de dizer como ele era “educado com a imprensa”. Naquele sábado, Olímpio cumprimentou cada um dos policiais do 16º Batalhão que estava ali e elogiou a morte de Ítalo, que para ele não era uma criança, mas um “bandido”, como declarou: “O resultado morte não é desejável nunca. Mas eu prefiro saber da morte de um criminoso-mirim de dez anos, do que de um policial, pai de família que estava ali em função pública”.
O movimento dos brancos foi confrontado pacificamente por integrantes de movimentos negros, que foram lá para um escracho. Entre eles, estavam militantes históricos do Movimento Negro Unificado, criado em 1978, como José Adão e Milton Barbosa. Para o mesmo Major Olímpio, contudo, que não conseguia enxergar humanidade e nem infância no corpo de Ítalo, era natural que não conseguisse enxergar legitimidade numa militância de corpos negros vivos. “Ganharam 50 paus e um lanche” e “estão aqui pagos com dinheiro público” foi o que Olímpio disse sobre os movimentos negros presentes.
O Olímpio que apoiou aquele ato racista em 2016 contrastava muito com o Olímpio que havia dado uma entrevista ao repórter William Cardoso, dois anos antes, quando ainda era deputado estadual e a Ponte dava seus primeiros passos. Ele se mostrava ponderado e lamentava a violência policial, que via como algo negativo, fruto do desespero em que os policiais militares viviam por conta do descaso do governo. “Quer saber se os policiais acreditam na lei? Cada vez acreditam menos. Isso é extremamente perigoso para a sociedade”, reconhecia. A fala equilibrada do político combinava com sua trajetória anterior como policial militar, a julgar por um depoimento no Twitter do cientista político Pedro Abramovay, que contou como Olímpio, então um capitão da PM, em 1999 passou informações a militantes estudantis do Largo São Francisco para que se mobilizassem a tempo de impedir que a Tropa de Choque avançasse sobre um grupo de sem-tetos acampados diante da faculdade.
É bem verdade que o extermínio nunca foi uma realidade distante para Olímpio, que teve como mentor político o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação que resultou na morte de 111 pessoas no Massacre do Carandiru, em 1992. Olímpio sempre defendeu o massacre, mas demoraria a adotar uma retórica explícita de ódio.
Ao contrário. Como deputado estadual, a principal bandeira de Olímpio era a defesa dos dos policiais, que via como um bandeira compatível com os direitos humanos. Sem boas condições de trabalho, dizia, os policiais se tornam assassinos e isso é péssimo para todos. Era uma argumentação racional e respeitosa, muito diferente da postura de outros políticos típicos das bancadas da bala.
Olímpio, contudo, só se tornou um sucesso na política quando abandonou a ponderação e resolveu abraçar o movimento crescente da extrema-direita, como fez naquela manhã de junho, se posicionando ao lado de defensores do assassinato de crianças negras. Nessa altura, já era outra pessoa pública, capaz de montar placar para comemorar mortes em presídios. Ou de fazer um discurso defendendo a morte de criminosos que, postado no YouTube pelo Poder 360, acabou censurado pela plataforma por ser considerado “prejudicial ou perigoso”. Em 2018, essa versão sanguinária de Olímpio, se mostrou bem sucedida. De braços dados com Jair Bolsonaro, conseguiu se eleger como o senador mais votado de São Paulo, com 9 milhões de votos, 26% dos válidos.
Leia mais: Polícia é principal responsável por mortes intencionais de crianças e adolescentes em SP
Dá até para imaginar que, para Olímpio, talvez o fascismo bolsonarista fosse menos questão de identificação do que de conveniência política. Tanto que ele veio a romper duramente com o presidente Bolsonaro, embora não tenha chegado a abandonar totalmente o negacionismo científico típico dos bolsominions. Esteve na cidade de Bauru (SP) e se aglomerou ao lado de lideranças como Luciano Hang, o Véio da Havan, para protestar contra o isolamento social e pedir reabertura do comércio. Duas semanas depois, foi internado com Covid-19.
Se Olímpio de fato acreditava ou não no defensor da morte que passou a encarnar, pouco importa. O fato é que o sistema político brasileiro o premiou por abandonar a ponderação e abraçar o fascismo. E isso é a tragédia que atinge o Brasil de hoje, um país que premia os políticos que se tornam as piores versões de si mesmos.
A morte de Ítalo, é bom lembrar, não mereceu luto oficial, como a de Olímpio, e nem justiça. Quatro anos após o crime, os policiais que o mataram ainda aguardam julgamento.
Que tantos estejam apenas louvando o senador e se esquecendo de que ele um dia apoiou o homicídio de uma criança é mais um sinal de que, no Brasil, vidas negras não importam mesmo.
Fausto Salvadori é diretor da Ponte Jornalismo
Os artigos refletem apenas o que pensam os seus autores, e não necessariamente a opinião da Ponte