A morte de Moïse Kabagambe é mais um golpe no mito do Brasil como terra da esperança de um futuro melhor para milhares de refugiados
“Vejam essa maravilha de cenário…É um episódio relicário…Que o artista, num sonho genial… Escolheu para este carnaval… E o asfalto como passarela… Será a tela… Do Brasil em forma de aquarela”.
“Aquarela Brasileira” é um samba-enredo composto pelo famoso compositor carioca Silas de Oliveira para a escola de samba Império Serrano, em 1964.
É um samba que exalta a cultura, valoriza as tradições e contempla a beleza natural brasileira.
“Em se plantando tudo dá”, expressão que, embora não esteja descrita em sua literalidade na carta escrita em 1º de maio de 1500 por Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel1, é a conclusão mais palatável e que melhor define a fertilidade das terras brasileiras.
Brasil dos antepassados indígenas, africanos, europeus e asiáticos sendo, provavelmente, o país com maior miscigenação no mundo.
Em razão deste “favorável” cenário, o Brasil é um possível destino de refugiados dos diversos países espalhados pelo mundo. Lugar que aparentemente oportuniza sonhar na exata medida da linda letra do samba composto pelo saudoso Silas de Oliveira.
Não por outro motivo, em 2017 foi sancionada a Lei 9.474/1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados, de 1951.
Refugiados são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.
Trata-se de uma forma drástica de mobilidade humana (deslocamento à força), que cresceu de forma desenfreada ao longo das últimas décadas. O escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) estima que o número de refugiados sob seu mandato ultrapassou 20,8 milhões2.
Neste contexto, destaca-se, infelizmente, a República Democrática do Congo que é o segundo maior país africano, fonte inesgotável de recursos naturais (cobre, nióbio, zinco, estanho, carvão), sendo ainda o maior produtor mundial de cobalto.
O nascimento do samba está intimamente ligado aos negros de Angola e do Congo.
Infelizmente, a despeito de ser um país com condições naturais que garantiriam prosperar num mundo globalizado e capitalista, as consequências nefastas das duas guerras (a Primeira Guerra do Congo – 1996-1997 e a Segunda Guerra do Congo – 1998-2003) e os conflitos civis existentes nas diversas partes do país com reiteradas chacinas, separação de parentes, abusos e violência sexual, levaram o país a situação de extrema pobreza e ao deslocamento à força de sua população.
Apenas em 2021 cerca de 865.000 congoleses foram deslocados à força do país de origem em razão dos confrontos entre as forças governamentais e grupos armados (milícias). Amparados por organizações ligadas à defesa pelos direitos humanos, buscam um novo lugar para reconstruir sua dura vida.
Em muitos casos, repetem o abominável itinerário dos navios negreiros, em condições semelhantes aos tempos de escravidão para tentarem recomeçar suas vidas, a fim de viverem sem medo e terem um lar, longe de guerras.
Moïse Kabagambe era um dos mais de 50.000 refugiados políticos presentes no Brasil. Chegou ao Brasil aos 11 anos com sua mãe e seus dois irmãos. Foi brutalmente espancado, por cinco homens, a pauladas, socos e chutes, assassinado no último dia 24 de janeiro.
“Ele trabalhava, a gente trabalhava duro, fugimos da África para ser acolhidos aqui, o Brasil é uma mãe, abraça todo mundo, Brasil é segunda casa, e como que vai matar o irmão trabalhando?”, disse chorando um amigo do Moïse.
Esta brutalidade não é caso isolado: em 2012 a universitária angolana Zulmira de Souza Borges, 26 anos, foi assassinada e quatro amigos foram gravemente feridos em um bar na região do Brás, em São Paulo. O mito do Brasil acolhedor fez mais uma vítima, assim como o mito da democracia racial mata diariamente jovens negros nas periferias brasileiras.
A sociedade brasileira claudica com sua consciência anestesiada, no aguardo pela próxima tragédia humana, provavelmente envolvendo um irmão de pele escura, enquanto o Brasil acolhe com braços abertos a impunidade para crimes desta natureza.
Contrariando a ordem natural, a mãe enterrou o filho.
O filho “ganhou notoriedade” quando sua vida foi asquerosamente ceifada.
O sonho acabou no último dia 24.
1 “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.”
2 De acordo com o Portal da Imigração, “O refúgio é uma proteção legal oferecida pelo Brasil para cidadãos de outros países que estejam sofrendo perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, ou ainda, que estejam sujeitos, em seu país, a grave e generalizada violação de direitos humanos”.
*Thiago Bernardo da Silva é paulistano, advogado e ativista de direitos humanos